domingo, 20 de janeiro de 2013

Pó de Arroz



António, 84 anos, barbeia há 60.
Quando cheguei, estava sentado junto à porta, à espera. Não de mim, tenho a certeza, mas de um amigo que lá iria fazer a barba.
Pedro apareceu naquele instante. Não é um cliente vulgar. Um cliente não se aguenta uma vida inteira… António corta o cabelo ao amigo “desde sempre”.
Não foi à escola – era preciso ajudar os pais. Nem à tropa, para «amparar» a mãe («amparo de mãe», foi essa a expressão que a filha usou). Sabe escrever apenas o seu nome – as filhas foram as professoras.
António Teixeira não é barbeiro de profissão. Começou a cortar barba e cabelo para ter melhor vida e fazer a sua casa e comprar um terreno. Na sua juventude ajudava o Barbeiro do lugar, que era também o sacristão. Muitas vezes António ia no seu lugar tocar o sino da igreja.
Anos mais tarde fez umas obritas na casinha onde nasceu. O anexo onde trabalha ainda hoje, o seu «salão» desde 1946, fora antes a sua cozinha e sala. Do lado de fora, na parede gravada pelo primeiro proprietário, sabemos da antiguidade deste espaço: 1838.
Pedro e António lembram-se de tantas datas: «há 60, há 50 anos». Eu ainda não era nascida. Fico a ouvi-los. António pouco fala: está concentrado fazendo a barba ao amigo, com gestos tão suaves, amorosos e lentos, que deixam Pedro sonolento, qual SPA!

As ferramentas que já não usa estão guardadas numa gaveta, enferrujadas. Reparo no lápis hemostático, parece um pau de giz, que António emprega para estancar o sangue.
António e os amigos, de quem já conhece a rotina, falam de futebol e mulheres (“aparece tanta coisa boa e nós não podemos…” – ri-se Pedro). O rádio está ligado o dia todo sintonizando a Rádio Arouca. António quer estar actualizado na equipa da terra onde o neto é guarda-redes. O antigo aparelho, tão velho como a bonita cadeira comprada em segunda mão no Porto, está coberto de pó de arroz, um pó branco, um talco inodoro que não é apenas para a maquilhagem, aprendi. António «arremata» o seu trabalho com essa «farinha» para que a pele do cliente fique macia e cicatrize os pequeninos cortes feitos pela lâmina.
Perguntei a Pedro porque continuava a vir cortar o cabelo e a fazer a barba. «Somos amigos». Depois explicou porque antes ou “antigamente” era tão importante vir à Barbearia do Teixeira: “ nós encontrávamos os velhotes e eles contavam muitas coisas para a gente se rir.” A filha de António, que mais parecia sua intérprete (António ouve mal), explicou-me que houve tempo em que António começava a barbear às sete da manhã e não parava até à hora do almoço, que era preciso chamar por ele. Hoje, o sr. Teixeira tem cerca de dez clientes certos, “já morreram mais de cem…”. “Perde anos de vida quando morre alguém que costumava vir aqui” – comenta a filha.
Era ele que ia a casa do padre A., que dava informações à PIDE. António e Pedro lembram-se da sua última missa no Lugar: “chamou ladrões ao povo, ele que nos roubou”.
António falou do tempo de infância, um tempo de muito trabalho: com 8 anos carregava vassouras à cabeça percorrendo vários quilómetros a pé e um dióspiro no estômago. “Agora é um mar de rosas (…) é uma riqueza (…). Só se ia uma vez por ano à praia e beber vinho uma vez por semana. Uma sardinha dava para três. Foi um tempo de fome, o tempo da «Negra»: “o meu comer foi muitas vezes figos. Três tostões era um punhado deles.”
Todos ali podem entram. Alguns cortam o cabelo e fazem a barba, dizem que vão buscar o dinheiro ao carro e não voltam.
Teixeira já cortou a mulheres, gente pobre. Corta barato e mesmo assim tem que fiar.
Pedro levantou-se finalmente da cadeira, cheio de pó de arroz, brincadeira da filha de António que o conhece desde criança: “Não estás a contar a verdade… e daquela vez que chegou um homem para cortar o cabelo e tu estavas a fazer amor com a tua mulher?”.

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