terça-feira, 2 de abril de 2013

O pão de cada dia

 

 


Chegámos, sem aviso, na segunda-feira de Páscoa, por volta das onze horas. Perguntei-lhe se podia conversar connosco (abordei-a uns dias antes na rua, pedindo-lhe este encontro para me contar a sua história). Maria Rosa estava a fazer o almoço.
«- O que quereis?».
«- Que nos conte a sua história», respondi. Ao que ela retorquiu: «Mas isso leva um mês!». Entrámos. Cheirava tão bem a sopa. Foi justamente com o cheirinho da sopa, o calor da lareira acesa e o chilrear do passarinho, que Maria Rosa tem em cima do móvel da cozinha, que aconteceu esta entrevista.
Quis que este momento fosse uma realidade por um motivo apenas: a curiosidade em conhecer Maria Rosa Vieira da Silva, que continua a distribuir o pão aos 76 anos. Vejo-a pendurá-lo nos puxadores das portas e portões de apenas quinze casas do Souto, quando faço as minhas caminhadas bem cedo pela manhã.
Digo «apenas», porque, no passado Maria Rosa chegou a carregar com 600 pães à cabeça. E fê-lo mesmo grávida do seu filho mais novo. Certo dia, “no resto do tempo”, a distribuir no Pardieiro, escorregou e caiu. Puxou para si o lençol onde estavam embrulhados os pães: “Molhei 40, mas salvei os outros!”E já lá vão mais de 40 anos. Maria teve vida difícil como muita gente. O marido não trabalhava. Fazia tudo sozinha. Maria é mãe de 6 filhos. Talvez por isso não esteja só: vivem consigo mais 6 pessoas (entre elas contam-se o filho mais novo, uma filha e o neto formado em Engenharia do Ambiente que não encontra trabalho).Maria sempre vendeu pão, sobretudo enquanto não havia no Souto nenhuma outra padaria para além do Lima.
(Entretanto chegam o bisneto e duas netas que ficaram a ouvir a bisavó e a avó, respetivamente, e de volta o cheirinho a sopa…)
Pergunto-lhe quais os ingredientes: cebola, batata, feijão, um pouco de massa, repolho, espinafres e cabaça.
Só a massa foi comprada. «Se todos fizessem assim, não custava viver». Maria conheceu, porque o viveu, o “tempo da fome”. Tinha 7 anos… lembra-se de brincar com os fósforos…Mas não é da infância que guarda as maiores recordações, parece-me. Repetiu várias vezes a saudade da mocidade (“adorava a mocidade, foi uma mocidade bonita”). O melhor tempo da sua vida. Gostava e gosta de dançar. Só lamenta não lhe ter sido dada mais liberdade.
Tem a 3ª classe, feita na escola do Padrão. Recorda-se ainda do nome da professora: Emília, que era da Arrifana. Batia com canas e réguas mas ensinava bem. Tinha a seu cargo cerca de 120 crianças em simultâneo, ou seja, as quatro classes. Rapazes de um lado, raparigas do outro. A professora chegou a pedir a alguém de Cabomonte que lhe fizesse uma cana que fosse suficientemente comprida para chegar da secretária ao fundo da sala para que não tivesse que se levantar.
Maria é do tempo do tinteiro de molhar a pena e do giz (“usado até as unhas”).
«- Dávamos 5 tostões para custear o material escolar».
A mãe não tinha luz em casa e, às vezes, tornava-se tarefa difícil terminar os trabalhos de casa…
«- Rezava-se antes de começarmos com os trabalhos [na escola]». Tinham a cruz e a fotografia de Salazar na parede. «Agora não», comenta.
Comeu pão com cabelo (não é força de expressão).
“Se vier a fome, eu não tenho medo. Tenho medo do barulho. Eu quero é paz. Depois que veio a Liberdade, estragou-se tudo.”
Foi servir aos 14 anos. Trabalhou 3 anos na casa que foi de Inácio Bragança (pai da D. Idalina), que também tinham mercearia, para além da Garagem. Dormia no andar de cima, onde hoje há uma sala para aulas de Dança. Ficou-lhe na memória que, muitas vezes, acabava de esfregar a loja às três da manhã.
Não só fez a distribuição de pão, como ainda confecionou doces, vendeu fruta e cozinhou para fora. Fez tudo para sobreviver.
Casou com 21 anos (o tempo mais bonito viveu-o até a esta idade). Os 33 anos que esteve casada foram de "martírio e sacrifício, mas o Senhor ajudou-me sempre”.
Contou que um dia os filhos foram ter com ela ao caminho (perto do restaurante do Vieira). Fazia-se tarde, dez da noite, e a mãe sem vir. (Vieram-lhe as lágrimas).
Não sabe estragar seja o quer for. Viveu sempre com muito pouco. “Hoje não há miséria”. Aproveita o que outros deitam fora, ainda em bom estado, como daquela vez que encontrou 20 iogurtes pequenos e deu-os ao porco. Não pode ver nada estragar-se.
Levantámo-nos. Pedi-lhe que me deixasse tirar-lhe uma foto no campo. Descemos as escadas, passámos por gaiolas vazias, outras com pequenos pássaros semelhantes a pombos; do lado direito o tanque onde lava a roupa (não tem máquina), depois a ameixieira e a oliveira que já vinham do tempo da sua mãe. (Emília Vieira dos Santos morreu com 97 anos. Foi à escola, sim. A mãe contou-lhe que um dos castigos que a professora lhes infligia era obrigá-los a ajoelhar-se sobre o milho… ).
Regressámos à casa.
«- Queres comer sopa?».Aceitei com muita vontade e apetite (passava do meio dia).
Ela passou a sopa. Enquanto saboriávamos a boa sopa, Maria Rosa foi buscar uma travessa redonda com mais de cem anos (a sua mãe sempre a teve) e contou-nos o «ritual» da refeição à volta do recipiente: todos comendo dele a «caldeirada». Cada qual procurava encontrar um pedacinho de bacalhau no meio das batatas e das couves, mas o único bacalhau que viam era sempre o que estava pintado no fundo da travessa de barro…

 



5 comentários:

  1. É uma história de vida muito bem relatada.... É importante dar voz a quem tem um percurso de vida que poderá servir de exemplo nos dias quer correm.
    Parabéns pelo teu contributo nesta "missão".
    Alex.

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  2. As aparentes coisas simples da vida são a pedra angular da humanidade, porque é a soma de todas as partes que faz o todo. É bonito, no aspecto estético e bom no sentimental, compreender a aparente simplicidade dos gestos que têm muita profundidade, ou melhor, a profundidade total.

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  3. São histórias como esta que me levam a pensar que, apesar de hoje vivermos uma grave crise, naquele tempo passava-se pior, e quiçá, palavras como frio, fome e sacrifício tinham "outro" significado, bem mais presente no dia-a-dia, bem mais pesado.
    Continua este trabalho fabuloso de trazer para estes "tempos modernos" histórias de tempos antigos, recheadas de cheiros e aromas, de sentimentos e força de viver. Temos sempre muito a aprender com estas memórias!

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    1. obrigada , Sónia, amiga, pelo apoio. Sim, é para continuar, mas sobretudo quero contagiar para que se repita esta iniciativa pelo país fora onde os idosos são cada vez mais e cada vez mais sós e isolados (tal como mostrou o Censos Sénior 2013 feito pela GNR)
      Abraço.

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  4. Não sendo desejável que a história de vida da Dª Maria Rosa Vieira da Silva (76 anos) seja de forma alguma uma experiencia que todos deveríamos experimentar, antes pelo contrário, desejável é que todos tenham acesso a uma vida digna e em que o poder aceder ao trabalho, à educação e aos cuidados de saúde, sendo um direito constitucional é acima de tudo um direito humano.
    Contudo esta história de vida leva-me a uma reflexão e a uma outra história.
    Sabemos que o ouro para ser purificado tem de passar pelo fogo e o crescimento humano também carece desse fogo purificador que ajuda a temperar a personalidade de cada um.
    A outra história é a de um menino, que tenho a felicidade de nascer numa família em que nunca lhe faltou o calor do corpo e da alma e em que o “ bacalhau “ era real e não o da pintura no fundo da travessa, desejou um dia, com os seus 13 anos de idade – já lá vão 54 –ter para seu prazer e companhia um pequeno rádio portátil “ um transístor com assim se designava “.
    O seu custo era avultado para a pequena semanada de 25 tostões, ou talvez não, atendendo aos tempos que não eram propriamente de abundância.,
    De forma determinada e sacrificial foi durante mais de um ano juntando os tais 25 tostões, privando-se de comer aquele queque desafiador na montra da pastelaria e percorrendo a pé a distância que mediava de sua casa aos locais que habitualmente gostava de frequentar – 7km para lá mais 7km de retorno -.
    Mas que alegria incontida quando pela primeira vez daquele pequeno transístor irromperam os primeiros sons.

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