terça-feira, 10 de junho de 2014

Consegui entregar as medalhas todas e não me enganei




O homem teve um momento de fraqueza, e razão a teve, coitado.

Partilhámos o mesmo quarto  - em camas separadas – numa pensão low cost, com águas quentes e frias, valha-nos isso. Ele passou toda a santa a noite a decorar o hino, que não lhe entra, eu a separar as medalhas. Quando nos deitámos já cantava o galo.

Eu consegui separá-las a todas – se bem que a meu ver e pudesse eu , quem as merecia  eram os cidadãos da minha aldeia – ele entrou em sofrimento e cabisbaixo no jipe azul ,e ainda teve que dar duas voltas  para passar revista completa, sem que o jipe se tenha avariado.

Depois as coisas não foram fáceis, têm que se ver como elas são. Do seu púlpito ao povo era uma distância enorme. O aparelho , de som, que têm usado ultimamente nestas festas, não anda a funcionar bem, ouve-se pouco. Para se fazer ouvir foi obrigado a puxar pela voz.  Esganiçaram-se sons com as ideias baralhadas e também porque ele - feitios – quando fala gosta de se ouvir, o ruído incomoda-o.

Meia dúzia de gatos assustados com as salvas e todo aquele armamento bélico , desataram a gemer, histriónicos são os gatos ; meia dúzia das ovelhas presentes, armadas de repente em cães começaram a acicatar os gatos; alguns centuriões enfadados com a sensaboria de andarem com as pesadas armaduras em cima do corpo, e nunca os deixarem entrar em acção, que para isso são pagos e  vão muitos a estas festas , infiltraram-se, ávidos de chibatada,  na provocação para um pretexto.

O homem preocupado em não conseguir acabar o hino – ia naquela parte em que basta um jipe azul dos nossos para pôr os rebeldes afegãos em sentido - teve o seu momento menos bom e claudicou.

Temeu-se que a senhora loira com um sotaque estranho tivesse que acabar o hino. Até os embaixadores já estavam a ficar com pele de galinha.

Felizmente não foi necessário – apesar de alguém a ter visto de costas voltadas a afinar a sua competência canora.

O homem recolheu por momentos à tenda dos Césares, deram-lhe sais, e açucares, e retornou ao trono, majestático, no entanto amarelento.

Acabou o hino, repetiu o refrão, e lá foi empalhado, na ressaca de uma noite insone, distribuir as medalhas.

As ovelhas gostaram da festa mas nem se aperceberam dela, pela lonjura em que tudo se passou, quanto mais longe melhor. No entanto em entrevistadas, e que bem escolhidas foram pelos reporteres, todas acharam que em dia de festa, o aparelho tem que funcionar, senão nada se ouve, nada se vê.

Depois tudo correu bem, atrasados para almoço, distribuímos o medalhame, era vê-los todos lampeiros e inchados com os seus novos saiotes coloridos, todos amigos, todos mesmo muito amigos, mesmo os que salpicam as lapelas uns dos outros, todos os dias, com pirolitos salivares, em amena cavaca, na plateia, a fazerem horas para a janta, que nestes casos costuma ser bom porque não são eles que a pagam: São as ovelhas eternamente sorridentes

Luis Robalo

2 comentários:

  1. Este é um texto que Fialho de Almeida assinaria de cruz. Os Gatos a as Farpas estão nesta linha verrinosa e satírica, que só os fadados pela graça e perspicácia sabem utilizar. Uma descrição magnífica. Parabéns, porque isto vale por milhentas reportagens.

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