quinta-feira, 26 de junho de 2014

Mundial 2014 e a Fisioterapia desportiva

A propósito da fraca prestação da equipe portuguesa no Mundial de Futebol, muito se tem conjecturado a respeito da suposta débil condição física dos jogadores, levando-se muitas vezes profissionais e leigos a (re)pensarem na força ou fraqueza dos actuais modelos de reabilitação (e prevenção) desportiva. Na verdade, e como veremos, subsiste um curto-circuito entre paradigmas de trabalho fisioterapêutico, facto e reflexão não atida pela maioria dos profissionais, quase todos convencidos de que a fraca condição física dos atletas advém sobretudo da igualmente fraca preparação ou treino.
Subjacente ao típico modelo desportivo, paradigma subsidiário de um modelo económico-social moderno, liberal e meritocrático que valoriza acima de tudo a "performatividade" (portanto, o resultado), está a noção de que um número elevado de lesões, como se verificou com a equipe nacional no Mundial, seria a consequência natural de um treino insuficiente e/ou de estratégias de prevenção da lesão igualmente escassas. Não vou dizer que esta noção e o seu paradigma estão de todo incorrectos, mas, ainda assim, o que representa a sua fraqueza é precisamente aquilo que permite, mas não deveria permitir, a existência do próprio desporto de alta competição. É que, na esmagadora maioria dos casos, em desporto, o protótipo fisioterapêutico utilizado é menos o da "Saúde" do que o do "Rendimento" e da "Performance", e é isso que, de algum modo, não obstante o seu não reconhecimento por parte de muitos terapeutas (e igualmente médicos), constitui a grande fraqueza do paradigma corrente.
A verdade é que são inúmeros os casos de lesões que, em circunstâncias normais de "Saúde", implicariam um processo prolongado de reabilitação, associado ao igualmente crucial descanso das actividades competitivas (e dos seus esforços desajustados). Contudo, no contexto competitivo, a prioridade é dada à própria prestação do atleta; e, no contexto desse paradigma, o fisioterapeuta deixa de ser um profissional de saúde para passar a ser o agente que permitirá a utilização contínua e urgente da máquina que entendemos como "jogador", independentemente das consequências que isto possa trazer a longo prazo para o atleta. Está em jogo o resultado, a "performance", o ganho a curto termo, e tudo deve ser feito de modo a disfarçar sintomas ou a permitir a função que serão vitais ao ganho, assim como à subsistência da máquina desportiva e de todas as outras "indústrias" com esta relacionada.
Assim sendo, perante a dor, aplica-se o método anti-sintomático que permitirá disfarçar os sintomas que são o aviso do desgaste; perante, por exemplo, um entorse, aplica-se a ligadura funcional que permitirá utilizar determinados padrões de movimento, mas de um modo vicioso e, portanto, com inequívocas consequências para o equilíbrio muscular; e perante a estrutura aparentemente fraca (quando na realidade ela se apresenta extraordinariamente tónica e tensa... daí a fraqueza e disfunção), submete-se o membro a trabalho de ginásio, ao treino de força que levará a estrutura a exaurir-se na patologia, na transformação tecidual viciosa.
Ora, muitos destes atletas trabalhados até à exaustão, precisavam - isso sim - de ser incluídos num processo de reabilitação que visasse cuidados pensados num tempo longo e inteligentemente definido. E isso poderia (e deveria) incluir mecanismos de trabalho baseados igualmente no alongamento e relaxamento. É que, na realidade, nem toda a Fisioterapia é baseada nos clássicos modelos desportivos e de actividade física, muito centrados na força e na resistência. Por exemplo, o modelo de Reeducação Postural, do qual sou proponente, utilizador e representante, visa no trabalho estrutural e de alongamento mio-fascial o vero caminho para a real e holística Saúde humana. Não obstante, a determinada altura, é impossível abraçar estes modelos de Globalidade sem repensar o conjunto dos modelos desportivos e fisioterapêuticos, sem ver o atleta menos como máquina funcional e performativa e mais como elemento estrutural palco de uma dialéctica morfológica que explica e ajuda a prever as futuras/presentes lesões (porque a Estrutura/Postura, o "design" do atleta, poderá ajudar a compreender de outro modo a sua própria predisposição para determinadas lesões). Mas aí já o fisioterapeuta se depara com a quase impossibilidade ética de se trabalhar no campo do desporto. É que, dada a incomensurabilidade de paradigmas, a quase impossibilidade de aplicar um modelo global a um Sistema que quer a celeridade a todo o custo, é comum o terapeuta moralmente comprometido abandonar o trabalho de uma fisioterapia que não está pensada para a Saúde... ou pelo menos assim deveria ser!... pois que a esmagadora maioria dos fisioterapeutas não se deixa afectar por este tipo de consciência... falta de moralidade, contas para pagar, a ambição da fama a todo o custo, ou a simples inconsciência, entre tantas outras razões que nem merece a pena referir.

Luís Coelho, fisioterapeuta e escritor, www.reeducacaopostural.blogspot.com

Sem comentários:

Enviar um comentário

Caro(a) leitor(a), o seu comentário é sempre muito bem-vindo, desde que o faça sem recorrer a insultos e/ou a ameaças. Não diga aos outros o que não gostaria que lhe dissessem. Faça comentários construtivos e merecedores de publicação. E não se esconda atrás do anonimato. Obrigado.

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.