segunda-feira, 9 de junho de 2014

Porque é que ele arrasta os pés?

Uma pessoa muito idosa deve sair à rua?
Na sua juventude, Norbert Elias (1897-1990), notável sociólogo conhecido sobretudo pelo estudo dos “processos civilizacionais”, foi assistir, em Cambridge, à conferência de um médico de nomeada. Viu então entrar um senhor muito idoso que arrastava os pés. A sua juventude saudável surpreendeu-se e como que se irritou: “Porque é que aquele homem não conseguia andar como as outras pessoas «normais»?”. A surpresa deu rapidamente lugar à indiferença: o senhor arrastava os pés porque era demasiado idoso.
Muito anos depois, tendo sido convidado por uma Universidade alemã, foi jantar a casa de um colega muito mais novo. Enquanto esperavam que a refeição fosse servida, o jovem anfitrião fê-lo (maldosamente?) sentar-se numa cadeira muito baixa, de que felizmente Elias conseguiu levantar-se sem problemas. A sua agilidade foi elogiado: há tempos, um professor também de idade estivera sentado naquela mesma cadeira baixa antes de a refeição ser servida, mas não conseguira levantar-se sozinho. E o colega mais novo não conseguia controlar o riso, como se estivesse a relatar uma cena cómica.

Norbert Elias contou estes episódios numa conferência que fez aquando de um congresso médico em 1983. Do seu ponto de vista, é a falta de identificação e empatia que os mais novos e saudáveis manifestam em relação àqueles que envelhecem e morrem que contribui para que surja nestes últimos uma sensação real de isolamento e de maior vulnerabilidade. No fundo, afirma, os não-idosos e saudáveis dificilmente conseguem conceber a ideia de que eles próprios irão envelhecer e morrer. Daí que um jovem jornalista lhe tenha perguntado, a propósito do seu livro sobre a solidão dos que morrem, porque é que escolhera um assunto tão “mórbido”.
Enquanto as sociedades conservam ainda muitos traços comunitários, é difícil envelhecer e morrer sozinho porque um forte sentimento de “privacidade” ainda não se instalou. Nem sempre estas características das sociedades se tornam benéficas, mas são um facto. Assim, acerca da sociedade medieval, escreve Elias noutro texto que, nela, de um modo geral, “a vida era mais breve, os perigos menos controláveis, a morte frequentemente mais dolorosa, o sentimento de culpabilidade e o medo do castigo menos dissimulados do que hoje, mas – quer isso fosse um bem ou um mal – a participação dos outros  na morte do indivíduo era muito mais normal”, pois tudo era também muito mais “público”, mesmo para as crianças, que não eram afastadas dos moribundos e dos funerais. Pelo contrário, a nossa época revelaria algo inédito na história da humanidade, ao relegar os mortos “para trás dos bastidores, para fora dos seres vivos, de modo tão higiénico”. Mais: “nunca antes os cadáveres foram expedidos da câmara mortuária ao túmulo de modo tão inodoro nem com uma tal perfeição técnica”.
Concretamente quanto ao envelhecimento, o estado lamentável em que geralmente funcionam os lares, sobretudo para quem tem pouco dinheiro, faz com que possamos aplicar-lhes a mesma expressão usada por Elias: “desertos de solidão”. Isto, para já não falarmos da falta de apoio domiciliário a pessoas de idade.
No fundo, queremos esquecer a finitude e a vulnerabilidade, mas esse esquecimento tem repercussões no modo como lidamos com os mais desprotegidos, como é o caso das pessoas idosas, dos que estão para morrer ou dos doentes. É também esse esquecimento que faz, por ex., com que nos locais de estacionamento os lugares reservados aos deficientes continuem basicamente desertos, como denunciou Ana Vicente em PÚBLICO do ano passado (1.10).
Há pouco, alguém me dizia de uma pessoa concreta já muito idosa que não devia sair à rua, que ficava mal. A meu ver, o que fica mal é retirarmos estes temas da agenda da cidadania política, ética e intelectual e não sabermos estar à altura de uma solidariedade concreta quando as circunstâncias o exigem.
 
Laura Ferreira dos Santos
Docente Aposentada da Universidade do Minho (laura.laura@mail.telepac.pt)

1 comentário:

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