segunda-feira, 11 de agosto de 2014

O Homem sem bens




Sua Eminência, o Dr. Núncio, teve uma noite atribulada, entre sonhos de difícil compreensão e entendimento.

Entremearam-se duas cenas, aparentemente sem sentido nem ligação: numa, um indivíduo de cabelo encaracolado, com ar de bandido de subúrbio, reclamava inocência, com uma nota de vinte euros na mão ( como se vê na fotografia que abriu os jornais da manhã), enquanto era chicoteado pelas forças da autoridade tributária. Uma investigação apurada que mobilizou cinco funcionários das Finanças, nos últimos dois anos, pôs a descoberto a fraude deste cidadão:  uma coima não paga de um veículo motorizado de sua pertença – mais precisamente duas rodas - , datada de 2012 e da qual não ressarciu o Estado.

Na outra cena, um individuo, já a caminhar para a terceira idade, no entanto com um ar fino, aparece a limpar o pó, da sua colecção de ovos Fabergé*, com um espanador, depois de ter passado o pano de camurça das cabras da Mongólia (as mais raras), pelo seu Bentley vintage.

O que mais atormentou o sono do Núncio foi o ar terrífico, maléfico, de impostor encartado , do primeiro personagem do seu sonho. Do segundo, guarda a sensação de já o ter visto algures, parecendo-lhe um cidadão exemplar.

Saiu de casa mal tocando na torrada com manteiga, e chegado à Secretaria telefona de imediato ao Director dos Impostos, que tarda em atender porque estava ainda a lavar os dentes.

-Está? Dr. Brigas? Fala Núncio.

- Oh Senhor Secretário, é um gosto ouvi-lo a estas horas. Em que posso ser útil?

- Como vão as coisas na ATA?

- Muito trabalho senhor Secretário, muito trabalho. Isto é um país de malfeitores, todos a fugir às suas responsabilidades. -Acabámos agora mesmo de apanhar o Robalo. Dois anos de labuta, que ele é dos espertos. –Mas conseguimos: depois de umas chicotadas valentes, acabou por confessar que se tinha esquecido de pagar a coima de vinte euros de há dois anos atrás. – Como se alguém se pudesse esquecer de pagar uma coima destas, ou de declarar nos impostos!

- Oh homem vocé não me diga que eu tenho percepções extra sensoriais!

- Tem o quê, senhor Secretário?

- Esqueça lá oh Brigas, foi um desabafo. Envio-lhe um abraço pelo excelente trabalho e já sabe quando acabar essa comissão, é só dizer. Neste momento temos em aberto a Santa Casa e a Comissão, a Europeia. É o que lhe der mais jeito.

-Obrigado senhor Secretário, apesar deste ordenado curto, estou aqui pela coisa pública e não saio enquanto não os apanhar a todos.

- Faz bem Brigas, faz vocé muito bem.- Olhe lá antes de lhe desejar umas santas férias, por acaso não conhece um cidadão, homem de traço fino – vê-se que de boas famílias – com uma colecção de ovos Fabergé* e um Bentley Vintage?

- Assim de repente, que eu esteja a ver, não conheço nenhum cidadão com bens desse tipo declarados ou por declarar. Se houvesse os meus agentes já o teriam descoberto.

- Passe bem Brigas, ainda há de ser medalhado pelo nosso Presidente!

Mais descansado, Núncio abre o jornal da manhã pousado sobre a secretária e aparece-lhe a cara do tal senhor de boas famílias. Conta a notícia a história de uma pessoa de bem que está agora a passar  um mau momento. Nem casa em nome próprio tem.

Deus por vezes é injusto! Pensou Núncio com os seus botões. Homens sérios como este sofrem a desdita, enquanto os meliantes do Rendimento Social de Inserção, andam por aí, como vermes, a sugar o Estado!

*são obras-primas da joalharia produzidas por Peter Carl Fabergé e seus assistentes no período de 1885 a 1917 para os czares da Rússia. Os ovos, cuidadosamente elaborados com uma combinação de esmalte, metais e pedras preciosas, escondiam surpresas e miniaturas encomendados e oferecidos na Páscoa entre os membros da família imperial. Disputados por colecionadores em todo o mundo, os famosos ovos de Páscoa criados pelo joalheiro russo são admirados pela perfeição e considerados expoentes da arte joalheira
In Wikipedia

2 comentários:

  1. Caro Amigo Robalo
    Nunca lhe falte a inspiração, porque num momento, como o que estamos a viver em Portugal e noutras partes do mundo, ela tão necessária como o bom senso. Tirar alguns ensinamentos dos prejuízos que nos cercam é uma capacidade que não está ao alcance de muitos. Parabéns e receba um abraço lusitano.

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