segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Nascidos para sofrer

Assisto ao parto, infelizmente a mãe não sobreviveu.
Como todos os recém nascidos está débil, vulnerável, assustado, tremulo, procura refúgio encostando-se a mim, olhando para cima, fixa o seu olhar no meu rosto como se estivesse pedindo piedade.
_Ó cachopa toma conta do bicho, dá-lhe um biberão de leite algumas vezes por dia, não o deixes morrer, pois ainda vai dar muito dinheiro, para prejuízo já chega a vaca da mãe.
_Tinha onze anos poucas vezes o meu pai falava-me, fiquei contente.
Passou a ser o meu bebé que eu cuidava, brincava nos campos verdejantes, dava-me turras com o seu corpo coberto de pelo preto, macio e luzidio, com o tempo foi crescendo, mas ele reconhecia-me ao longe, fui a mãe que nunca teve.
Alguns anos depois, meu pai leva-me pala primeira vez a uma tourada, era adolescente, estava renitente devido a alguns comentários que tinha ouvido mas com receio da reação dele anui.
Quando o touro é solto na arena, reconheci logo o meu bebé, o meu bebé grande, suspendi a respiração, tive o pressentimento que algo de tenebroso ia acontecer.
A tourada começa com a lide a cavalo, durante a qual o cavaleiro começa por cravar no dorso do touro um número variável de farpas (ferros), com o decorrer do tempo o animal perde muito sangue devido às lacerações na carne, o ritmo cardíaco aumenta drasticamente e enfraquece progressivamente, por esta razão segue-se a pega, um grupo de oito homens, (forcados) tentam agarrar e imobilizar o touro, provocando o agudizar do sofrimento do animal.
Como se já não bastasse, segue-se a lide a pé em que o protagonista (bandarilheiro) crava no dorso do animal vários ferros (bandarilhas), nesta altura a parte de cima do animal esta dilacerada com tantos golpes que cortam músculos, tendões, nervos e chegam a atingir a estrutura óssea, com a perda abundante de sangue e dor, o touro entra numa fase de atordoamento ou delírio, não sabendo para onde se dirigir, ficando estático, o sofrimento é descomunal, impossível quantifica-lo, mas suponha que estas sevicias eram praticadas em si, por muito corpulento e resistente que fosse, aguentaria no máximo escassos minutos ou nem tanto, pois tão horrendo é o sofrimento que morreria muito provavelmente de ataque cardíaco.
O meu bebé grande cai parcialmente, dobrando os joelhos das pernas da frente, é arrastado para o exterior da arena, deixa um rasto de sangue, corro ao encontro dele, agonizante, o meu bebé grande sabe que lhe faço festas na cabeça, completamente retalhado e ensanguentado nas costas, sangrando pelas narinas, com a língua fora da boca espumando e sangrando, os olhos parcialmente fechados, o brilho do seu olhar apagou-se, o meu bebé grande deixou-me.
Porquê? Que mal fez o meu bebé para sofrer tanto, só sinto morte e ódio á minha volta, não aguento mais, fujo para casa, escondo-me no meu quarto.
Á noite ouço o meu pai a chegar, provavelmente alcoolizado, trata mal a minha mãe, mais uma vez.
_A tua filha?
_Ela foi contigo.
_Foi comigo, mas desapareceu, a cachopa é outra inútil como tu que nem consegue parir um filho, a quem vou deixar o negócio, a uma mulher, puta de merda, com tantas mulheres no mundo deixei-me embruxar por esta mula.
Passados cinco anos ele assassina a minha mãe com uma espada igual á que os toureiros usam para matar os touros na arena tentando atingir-lhe o coração.
Quando ele morreu, olhei para ele dentro do caixão, senti que estava num deserto sem fim a olhar par uma pedra, apenas uma pedra.
Não permiti que fosse sepultado na campa da minha mãe, seria imoral juntar na morte o que sempre viveu separado, não consigo perdoar.
Acabei com este macabro negocio, tenho protegido animais abandonados e maltratados.
Estou velha e cansada, sinto que pouco tempo me resta, lembro-me da minha querida mãe, que se sacrificou por mim, do meu querido bebé grande, ambos vítimas da violência que só tem um nome: ódio.
Por tudo quanto têm de mais sagrado, não permitam mais isto, mais não.
                                                                                               Com amizade.

                                                                                                      Araujo.

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