sexta-feira, 22 de maio de 2015

GRITO




Aqui estou, aqui estás. Esganiçamos a voz em oitavas impensáveis aos limites das cordas vocais. Em bicos de pés, os dois, elevando-nos até ao impossível, dizendo que estamos aqui, e não vamos em cantigas.

 Estamos e vamos continuar, no trabalho de aguentar a podridão e a hipocrisia, os comentadores de futebol, os colunistas desonestos, alguns apresentadores televisivos, quase todos os associados partidários, os vilões, os apáticos e tolhidos de vontade própria que se contam com demasiados zeros.

Estamos porque não vamos partir se nos mandam, nem voltamos só porque querem, no dia em que acordam sem assunto e lhes parece composto dizer asneiras dessas.

Não nos entranham os medos da desprotecção absoluta ou da intervenção musculada. Os cães obedecem à voz do dono, e a falta de carácter não reside nos animais, que são fiéis, mas nos donos que não sabem mandar, mandam por caprichos, fraquezas de prima donas, explicações psíquicas de infância e de relações familiares.

Estamos aqui esticados a gritar, e tanto gritamos que alguém nos ouvirá. Já conseguimos uma posição privilegiada: arrimámo-nos à copa de uma árvore, e como os cães não a conseguem trepar, não nos calam.

O que eles, parcos, não percebem – muito menos controlam – ainda que nos emudeçam à fisgada, é que as palavras, depois de ditas, ganham a velocidade dos ventos e polinizam os campos. Rodopiando, roçam nos ramos das árvores e fazem ricochete, ganhando outros caminhos, incontroláveis, descontroladas, chegando aonde não se espera. Causam a maior das entropias.

Chegam a espanar a inconsciência das consciências adormecidas, juntando ao grito nosso outros companheiros.

De repente, o que parecia um acontecimento controlado e comezinho, descamba num ruído insustentável.

Os cães perdem o tino, os mandantes ensurdecem descompensados, e nós os dois, que julgávamos estar a gritar sozinhos para o absurdo, vamo-nos rodeando de parceiros motivados.

Afinal valeu estarmos os dois aqui, termo-nos deixado ficar, e excêntricos que sejamos - o que importa isso - incomodamos e somos patriotas, e essa lealdade poucos reclamam.

Bastamos dois para fazer uma revolução no mundo.


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