sexta-feira, 4 de março de 2016

GLOBALIZAÇÃO E A “CULTURA DA INDIFERENÇA”

Existem temáticas que temos algum constrangimento em abordar, não porque elas não sejam de uma enorme pertinência mas porque magoam. Contudo, não é por não as abordarmos que elas deixam de doer; antes pelo contrário. Muitas vezes alojam-se ali no cantinho do sentir e vão moendo, até que não conseguimos aguentar mais a dor e temos que a partilhar. Nesta altura percebemos que afinal o tema não é o tema mas um conjunto intrincado de temas do chamado mundo contemporâneo que se entrelaçam entre si, quais rendas de bilros feitas por mãos de crianças famintas e que, o que nos aflige é bem mais obsceno do que parece à partida.
Concretizemos.
Esta coisa de, todos os dias morrerem de fome milhares de pessoas, entre as quais uma percentagem muito significativa de crianças é algo intolerável para qualquer ser humano que não tenha uma pedra no meio do peito, sobretudo quando todos os estudos disponíveis demonstram que, grosso modo, 40% da comida produzida no mundo não é consumida e é, simples e literalmente deitada para o lixo. Se falarmos apenas em supermercados e restaurantes ficamos a saber que estes são responsáveis por mais de 180 milhões de quilos de alimentos produzidos a cada ano, e quase um terço disso nunca é comido, ou seja vai para o lixo.
Só este simples dado demonstra que as economias neoliberais matam mais pessoas do que todos os exércitos de todo o mundo e nenhum responsável foi acusado e punido por isso, pelo menos que eu tenha conhecimento.
Por falar em economia, vamos a outro dado digno de reflexão. O ultimo levantamento sobre a distribuição da riqueza no mundo revela o acentuado agudizar das assimetrias sociais, com dados profundamente revoltantes : 62 pessoas / famílias no mundo são detentoras de metade da riqueza gerada no mundo ou seja 62 pessoas / famílias são mais ricas que do 3.5 mil milhões de pessoas. Para que o retrato seja ainda mais fiel, dizem os dados que cerca de metade estão nos Estados Unidos, 17 na Europa, e os restantes na China, Brasil, Japão e Arábia Saudita, sendo que a maior fatia dessas fortunas reproduz-se de forma plácida e serena num qualquer distante paraíso fiscal, longe portanto das volatilidades da economia e da alta finança.
Só por si estes dados chegariam para nos levar ao vómito perante a hipocrisia do mundo, mas se juntarmos a estes dois dados outros que também passam despercebidos, como por exemplo a utilização de mão-de-obra infantil escrava por parte das grandes marcas mundiais de roupa, calçado e alimentação, então facilmente chegaremos à conclusão que o ser humano é de uma perversidade bem mais refinada do que poderíamos imaginar.
Marcas conhecidas e “prestigiadas” como a Nestlé, a Burberry, a Nike, a Adidas, a Coca Cola, a Ikea, o Walmart; a Monsanto ( não, não é a vila portuguesa ), a Victoria’s Secret, a Apple, a Samsung e a Sony, entre outras, foram já várias vezes referenciadas como utilizando mão de obra infantil escrava e não é por isso que as suas vendas decresceram. Estranho? Nem por isso, se tivermos em conta a desumanização progressiva a que assistimos na aldeiazinha global de consumo em que vivemos.
Enquanto escrevia estas palavras passou-me pela retina uma passagem do Expresso que me parece muito oportuna reproduzir aqui : "De cada vez que procuramos o caminho do privilégio ou do benefício de uns poucos em detrimento do bem de todos, cedo ou tarde a vida em sociedade se torna terreno fértil para a corrupção, o narcotráfico, a exclusão, a violência, o tráfego de pessoas, o sequestro e a morte." Papa Francisco no Palácio Nacional, cidade do México. (Expresso, 2015.02.14).
Nestas breves palavras de uma assertividade sem contestação do Papa Francisco, temos o retrato do mundo de hoje e a forma como as sociedades se estruturaram de uma maneira de tal forma assimétrica que a maioria dos seres humanos do mundo são verdadeiramente escravos e muitos outros, por ignorância ou negligência alimentam essa escravidão através do consumo desenfreado a que são convidados todos os dias pelas cada vez mais agressivas campanhas de publicidade que nos entram casa a dentro.
Nunca como agora a expressão- “Money makes the world go round “ ( o dinheiro faz o mundo girar ) fez tanto sentido e nunca tanto o Ter foi, (erradamente do meu ponto de vista mas o que eu penso não interessa nada ), sinónimo de Ser. Se não tens , não fazes parte, és um desalinhado do sistema e quantas vezes, objecto de bullying e outros preconceitos do género.
Um bocado de papel e os benditos mercados que ninguém sabe quem são, quem está por detrás deles e com que propósitos, cercearam completamente a nossa liberdade e capacidade de decisão que parecemos robotizados, mas mais grave do que isso fomentaram a “cultura da indiferença” provocada por uma “cultura do bem estar” que leva as pessoas a viverem em “bolhas” na ilusão “do fútil e do provisório”.
O mundo está a desmoronar e ninguém parece seriamente preocupado com isso.
Ghandi disse uma dia que “A economia que despreza as considerações morais e sentimentais é semelhante às figuras de cera que, parecendo vivas, carecem da vida proporcionada pela carne. Em todos os momentos cruciais, estas novas leis económicas caíram ao serem colocadas em prática. E as nações ou os indivíduos que as aceitarem como guia irão perecer.”
Tenho que me preparar para continuar a ter momentos de tristeza e para continuar a ter força e perseverança para acreditar que um dia iremos mudar - que passaremos da "globalização da indiferença" para a "globalização da solidariedade, do afecto e do respeito pelo outro".
Muito de vós acharão que é absurdo ou mesmo ridículo assim pensar, mas eu sou como sou e cada dia que passa me convenço mais que sem cultura de afecto somos muito "poucochinho" como agora parece estar na moda dizer.
Graça Costa
Socióloga
*Este artigo não é escrito ao abrigo do acordo ortográfico. Os dados foram recolhidos de estudos feitos sobre os assuntos referidos e estão disponíveis Na Internet

6 comentários:

  1. um tema importante, na análise da sociedade actual, é o da distribuição da riqueza, que não tem merecido realce no desenvolvimento e ordenação da sociedade. Os governos estão sempre interessados no crescimento económico, mesmo que este se desenrole de forma anárquica, sem um mínimo de distribuição equitativa, e não se preocupam com a distribuição da riqueza criada. Uma política de distribuição, devia ser encarada como prioritária, pois apenas o crescimento como única meta a alcançar, cria uma insegurança para os mais fracos, que são triturados pelos os que têm maior poder. Temos de olhar mais para as pessoas, distribuir em conformidade, e não nos orientarmos exclusivamente pelas estatísticas. Um país que distribuir melhor, fará mais feliz o seu povo, que outro que tenha como objectivo, apenas, o crescimento do PIB.

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    1. concordo inteiramente caro colega blogger.
      Senti necessidade de escrever sobre o assunto. Sei que na sociedade egoísta e egocêntrica em que vivemos, estes "estados de alma" pouco colhem, mas como cidadã e sobretudo como mãe, sinto-me na obrigação de o fazer e felizmente, pelo menos neste meu último papel - o de mãe- tenho tido sucesso. Grão a grão...talvez façamos a diferença

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    2. Temos, tenho ainda, dificuldade em aceitar que o pouco (bem comum) que fizermos, o pouco que fazemos, é importante.

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    3. quando for contaminada com o vírus da indiferença, quase tudo deixará de fazer sentido. Espero conseguir continuar a ter força para denunciar e lutar por um mundo melhor.

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  2. Mais uma vez a nossa amiga Graça Costa, vem aqui colocar o dedo numa ferida dolorosa, obscena, imoral. O sistema que a gera, chama-se capitalismo. Por isso, eu sou contra ele. Não voto nos partidos que dele fazem parte e dou a minha modesta contribuição na luta contra ele.É um imperativo moral, substitui-lo (melhorá-lo não é possível) por outro bem mais justo e humano. Depois chamem-lhe o que quiserem...

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    1. absolutamente meu caro amigo - é essa também a minha luta, consciente que estou da fragilidade da mesma porque poucos a entendem.
      obrigada e uma muito boa tarde.

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