quinta-feira, 25 de agosto de 2016

A crise moral e os impostos





A crise moral e os impostos

*Cristiane Lisita




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“A mesma mão que afaga é a mesma que apedreja”, escrevera o poeta Augusto dos Anjos. A crise econômica, política e institucional que se descortina sob o céu de Portugal se ampara na ausência de certos padrões éticos e morais, pilares de qualquer sociedade. A mesma mão do governo que afaga nos pleitos eleitorais é a mesma mão que ameaça soçobrar todos os alvedrios, toda a dignidade da classe média e dos pobres num crepúsculo durável. O que deve resistir a todas as crises é o ideal de justiça e de equidade, um combate infindável à extrapolação de valores.

Este não é um país pobre, mas de uma maioria de pobres, cujo governo os toma como um número a mais. Também é uma terra de alguns poucos milionários. A concentração de renda tem aumentado nos últimos anos na zona do euro, e, sobretudo, nesse país cujos ricos se restringem a 1% da população que detém mais de 20% da riqueza total.  A classe média nacional ainda não tem uma definição plausível para classificá-la. De acordo com o INE, dados de Dezembro de 2015, a média do rendimento anual situava-se em cerca de 8.430 euros. Lembre-se de que grande parte da população não chega a pagar o IRS porque seus salários não atingem o patamar para cobrança da alíquota. A expectativa da devolução da sobretaxa do IRS em 2016 também foi frustrada.

No entanto, não faltam impostos a pagar. A Contribuição Extraordinária de Solidariedade implantada pela Lei n.º 55-A/2010, incidindo sobre pensões, subvenções e prestações pecuniárias de idêntica natureza cujo valor mensal fosse superior a 5000 euros, teria por pressuposto a tributação em 10% referente ao montante que viesse a exceder o patamar dos 5000€. Regra que excluiu os diplomatas e os magistrados reformados que não tiveram redução salarial. Mas o Tribunal Constitucional os incluiu qualquer funcionário público, a ter direito a subsidio de férias. São dois pesos e duas medidas.

Ressalte-se que o IVA talvez seja o imposto menos ‘desigual’, uma vez que qualquer camada social irá pagar sobre o que consome, ou seja, a ideia protagonizada é de que quem gasta mais, adquirindo mais produtos do mercado, seguramente, pagaria mais impostos. O que nem sempre pode ser considerado teorema absoluto porque o rico costuma ‘economizar’ mais que a classe média, proporcionalmente. Essa última, quando lhe sobra alguns trocados busca a poupança ou pequenas aplicações nos bancos, contribuindo com mais imposto camuflado pelo Banco Central.

O país dos católicos transformou-se no país dos impostos apostólicos. A mão pesada do governo na sua missão de angariar fundos não perdoa nem mesmo os padres. Não lhes beijam mais as mãos, mas as exigem para a palmatória. Apesar da Concordata, solenizada em 2004, definindo que as dioceses e jurisdições religiosas "estão isentas de qualquer imposto ou contribuição geral, regional ou local sobre os lugares de culto", a autoridade Tributária e Aduaneira não perdeu tempo e lançou cobranças acerca do Imposto Municipal sobre Imóveis em inúmeras paróquias e dioceses do país, desrespeitando o acordo internacional com a ‘Santa Sé’.

Não bastasse, outras propostas circulam e devem ser definidas até 2019, recomendando a reintrodução do imposto sucessório para heranças que ultrapassem a casa de um milhão de euros. Primeiro, pode-se contar rapidamente os cidadãos que possuem essa quantia disponível relativamente ao seu patrimônio. Segundo, tal cobrança jamais reduziria as desigualdades latentes e a exclusão social de uma determinada parcela da sociedade, sobretudo daqueles que possuem em mísero pedaço de chão pra plantar suas batatas. As disparidades continuam a crescer.

A propósito, a taxa de tributação atinge o patamar de 56,5% para contribuintes que apresentem rendimentos coletáveis superiores aos 250 mil euros, sendo 54% acima de 80 mil euros. O que isto significa? Além de mandar a classe média às favas, quer se assegurar que esses contribuintes de patamares mais elevados peguem seus rendimentos e os remetam para o exterior onde poderão pagar reduzidos impostos. Como é possível um país que apresente um dos menores salários mínimos da Europa tenha uma das mais acentuadas taxas de imposto dentro da OCDE, equiparando-se a países como a Holanda, por exemplo?

Anote-se, ainda, sobre o BCE no programa de compra de ativos, cujas taxas de juros devem permanecer nos níveis atuais ou mais reduzidos possivelmente até primeiro trimestre de 2017. Se por um lado, enseja um ânimo para investidores das Bolsas, por outro, a inflação excessivamente baixa na zona do euro denuncia a precariedade do consumo, gerando clima de instabilidade por parte desses investidores de capital de maior risco, diante das dívidas públicas e privadas. De tal modo, pra quem sobra pagar as dívidas?

No momento atual salda-se imposto de transmissão de bens pós-morte, na tabela de 10% sobre o valor geral, isentando-se os descendentes imediatos, ou seja, os filhos, e igualmente cônjuge e pais. A propalada taxa sucessória em estudo subiria até o valor de 28% como uma espécie de taxa única. Que nunca será única uma vez que se prossegue pagando outros impostos e taxas sobre a mesma propriedade de bens imóveis, e outros, como carros, cujos encargos foram elevados. Essa taxa, depois de uma década, quer ser ressuscitada. Fato esse que induziu inúmeros cidadãos a anteciparem a transmissão desses bens, em vida, buscando se evadirem de mais essa tributação sobre patrimônios milionários.

Não satisfeito, o governo deu seu toque de Midas no Imposto Municipal sobre Imóveis. Ter uma casa voltada para uma boa exposição solar, e vista satisfatória não é mais pra qualquer um. Aliás, nunca foi. Mas a situação piorou. O IMI pode ser agravado na alíquota de 20%, com os novos cálculos, para o proprietário que possua ou usufrua dessas benesses com seu bem imóvel voltado para a faixada sul.

Decidiu-se que as casas orientadas para o norte deverão pagar menos impostos. Espera-se a chegada de pai Noel, com suas renas, pela chaminé? Por que tanto menosprezo à capacidade de entendimento do povo? Durante os quatro meses de inverno e mais os outros de chuva certamente a luminosidade das casas para o norte será mais reduzida, e diminuída, igualmente, a exposição ao calor do sol. Classe média e pobre pagarão mais outros impostos e taxas. Vão consumir mais energia elétrica. Vão consumir mais gás para se aquecerem. Depois de um dia sofrido de trabalho é proibido imaginar uma casa com varanda que tenha vista, ou o ar fresco de certo verde parque. A meta é esquecer os sonhos como as moedinhas deslembradas no fundo do bolso. Ouvir as velhas carpideiras disseminando pessimismo.

Assim, esse povo quer partir. Foram mais de 700.000 mil  nos últimos quatro anos que emigraram. Não conseguem sequer emprego. Pressionam essas pessoas até que não acreditem em mais nada. Os lavradores guardam sua terrinha pra quem sabe um dia a situação mudar. Outros, pedintes, desfilam pelas ruas da bela capital, pelos metros, no meio dos turistas, em busca da mão que possa lhes dar o pão do dia. A classe média se envereda para dívidas, ou, quando muito, retrai seu padrão de vida. Imposto e novamente imposto, burocracia desmedida, falta de respeito com essa gente trabalhadora tratada com cabresto. Não se sabe se “o sal não salga ou se a terra não se deixa salgar”.

Aquele 1% da população certamente tem nesse solo suas casas com faixadas retornadas para o sul, mas seus horizontes são mais ao norte da Europa, pois é noutros sítios que vão gastar ou investir seu dinheiro embolsado daqueles que consomem das suas fábricas, ou dos seus agronegócios, ou outros business. A crise moral que permeia a sociedade é a que reflete desigualmente os desiguais. A crise moral que ora se revela é como aquela cantada em versos por Augusto dos Anjos cuja utopia parece desvanecer-se entre a mão que afaga e a mão que apedreja.

Parafraseando: “Vês! Ninguém assistiu ao formidável enterro de tua última quimera. Somente a Ingratidão - esta pantera -Foi tua companheira inseparável! (...) O beijo, amigo, é a véspera do escarro, A mão que afaga é a mesma que apedreja. Se a alguém causa inda pena a tua chaga, Apedreja essa mão vil que te afaga, Escarra nessa boca que te beija!”.

*Cristiane Lisita
(jornalista, escritora, advogada)





4 comentários:

  1. Este documento é uma análise profunda sobre a realidade da sociedade portuguesa no campo da exploração tributária a que os últimos Governos têm sujeitado o povo deste país. São verdades tão evidentes, mas que os responsáveis não ligam, pois não sabem conduzir o barco a um porto seguro. Estas vozes serenas e justas clamam no deserto, porque ninguém as ouve, mesmo os que são ultrajados pela forma indigna como os governantes os tratam. O grande problema, a tarefa ingente, é como sair desta tragédia?

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  2. Já tive o prazer de conhecer pessoalmente a Cristiane, e de conviver por duas vezes com ela. A ultima, foi no lançamento de um livro seu sobre o vinho do Porto e a região que o produz. ( prometeu-me um! Não se esqueça!). Agora, assina este excelente texto.Entre outros, ainda recentemente publicou aqui outro, belíssimo, sobre as cotovias (pássaro que nem sequer existe no país dela...) Ou seja, quem dera a tantos de nós, portugas, conhecer tão bem o nosso país, como ela que é brasileira. Uma brasileira, é justo que se diga, para além de inteligente, culta,sensível e despretensiosa, é uma lindíssima mulher. Obrigado, Cristiane, por partilhar connosco a sua criatividade e conhecimentos tão úteis.

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  3. Formidável, Cristiane Lisita! Continues a escrever desta maneira profunda e verdadeira, pois é preciso trazer à memória de nossos governantes que o crescente tributar está a destruir o amanhã de nosso povo.

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  4. Formidável! Nada como uma análise objetiva acerca das dificuldades que nós vivemos na atualidade, advindas das duras penas tributárias impostas pelo Governo a este povo sofrido. Parabéns pelo bom senso e capacidade de raciocínio.

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