“Jornalismo
em crise: salários baixos, precarização e abandono da profissão”.
É este o
título de um artigo no PÚBLICO de 15/12/2016 com base num inquérito integrado
num doutoramento em curso no Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX
(CEIS20)
Em Portugal,
muita gente há que, nos locais de trabalho, tem que se submeter a baixos
salários, à individualização e precarização das relações de trabalho (por
várias formas, muitas delas não legais, por exemplo, a subversão das regras e
da contratação de trabalho a termo ou em regime de trabalho temporário), à
sobre intensificação (em ritmo e ou duração) do trabalho, à clandestinização da
relação de trabalho, à subdeclaração patronal de salários à Segurança Social, a
atraso no pagamento dos salários.
E, mesmo, a condições de trabalho degradadas
(inclusive com risco da saúde e até da vida), à indignidade do assédio moral,
enfim, à violação dos direitos legalmente (ainda) previstos que, formalmente,
garantem um trabalho digno (recorrendo a um conceito actualmente
central na missão e acção da Organização Internacional do Trabalho).
Ainda que
sob o “manto diáfano” da inovação tecnológica, do “empreendedorismo” e dos
"novos” modelos de gestão, a desregulamentação consubstanciada nas
recorrentes “reformas do mercado de trabalho” (desde logo, nos Códigos de
Trabalho de 2003 e 2009 e, especialmente, nas alterações introduzidas em 2011,
2012 e 2013, sempre mais diminuidoras ou eliminadoras de direitos), directa e
ou indirectamente, induziram maior desregulação social (incumprimento da
legislação laboral), no mundo do trabalho, na medida em que, a par do
desemprego “cá fora”, fragilizaram os trabalhadores nas relações de trabalho, inibindo-os
de reivindicar os seus direitos ou, até, de denunciar a sua violação às
autoridades e aos tribunais competentes.
Neste
contexto, campeia por aí, em muitos locais de trabalho, muita violentação
humana e social, podendo, nalguns casos, chamar-se-lhe (neo) esclavagismo
laboral, ainda que sob formas mais ou menos soft e, assim,
dissimuladas ou “abafadas”.
Para além
das consequências objectivas e directas dessas situações (que as pessoas se
sujeitam a "aguentar" de "bico calado", perante o
desemprego que está "lá fora"), resta-lhes, mortificante, primeiro a
revolta mas, depois, a angústia (que vai degenerando em conformismo) de, por um
lado, terem que calar (ou até negar, se questionados, inclusive às autoridades
competentes) essas situações e, por outro, não sentirem na comunicação social o
interesse, a lucidez e a implicação no aprofundamento e denúncia dessas
situações.
Sim, o
trabalho, o trabalho em geral, tem sido focado na comunicação social mas, em
regra, salvo raras e honrosas excepções, muito apenas ou pelo prisma do
emprego e desemprego ou pelo enfoque de contribuições e impostos (de que o
trabalho é tributário). Ou, então, muito redutoramente, pelas vertentes
político-juridicista (na discussão da “rigidez “ ou flexibilização” da
legislação laboral) ou político-economicista (por exemplo, sob uma “visão de
mercado”, quanto aos “custos” do trabalho).
Mas, talvez
porque muito invisível na “caixa negra” das empresas (e da administração
pública) e sem “dignidade” (ou melhor, valor comercial, digo “informativo”)
para constituir “cacha”, o trabalho real, o trabalho humano, o trabalho que as
pessoas fazem e como (onde, quanto, com quê, para quê …, em que condições) o
fazem, é um “obscuro objecto”, um ângulo morto” da comunicação social.
Ora, se bem
que os jornalistas possam ser disso tidos como “culpados”, na verdade, sendo
também eles próprios trabalhadores, são também disso vítimas, visto que, apesar
de termos agora esse inquérito científico neste domínio, pouco
consta que, do trabalho dos próprios jornalistas (mormente, das condições
laborais em que o realizam), até agora (sempre ressalvando algumas poucas
excepções) tenha vindo a público algo aprofundado e substancial na comunicação
social.
Pelos dados
já conhecidos do referido inquérito, conclui-se, então, de uma “preocupante”
precarização e desvalorização (também) do trabalho dos jornalistas, bem como da
degradação das condições em que realizam esse trabalho. E, tão ou mais
“preocupante”, conclui-se, mesmo, existir uma relação nefasta entre a situação
laboral dos jornalistas e o desempenho do seu trabalho, incluindo no quanto
essa situação laboral “afecta o cumprimento dos preceitos éticos e deontológicos
no desempenho da profissão”.
Sendo assim
– e essa é uma das leituras que é possível fazer deste inquérito –, muitos
jornalistas estarão a ser fragilizados na sua autonomia (para já não
falar na sua independência), por via da precariedade (e degradação das
condições de trabalho que lhe está sempre associada) da sua situação como
trabalhadores, sendo disso também resultado não tratarem e denunciarem essa
situação laboral existente na profissão. Ou, então, porque, conformadamente,
passaram a considerar essa sua própria situação laboral como “normal” num
quadro de crescente precarização geral do mundo do trabalho, dando,
assim, razão a Pierre Bourdieu (Contrafogos I, 1998): “A insegurança
objectiva é a base de uma insegurança subjectiva generalizada que afecta hoje
(…) o conjunto dos trabalhadores, incluindo aqueles que não foram ou ainda não
foram directamente atingidos”.
Esta
hipótese é ainda mais preocupante quando, com base numa opinião qualificada e
autorizada com origem na própris profissão, “ um ambiente de medo, de chantagem
e de aniquilação pura e simples é a regra em muitos locais de trabalho. Mas em
relação a um jornal tendemos a pensar que nunca se chega a um tal nível. No
entanto, algo se transformou nas últimas décadas e os jornais tornaram-se
completamente permeáveis às lógicas mais duras das relações de trabalho. Os
jornalistas são hoje uma classe proletarizada a quem não é reconhecida a
pertença ao universo profissional dos que gozam de autonomia intelectual” (António
Guerreiro – “como se fosse um destino” - “Estação Metereológica” –
Ípsilon / PÚBLICO, 18/12/2015).
E ainda para
mais quando esta e outras idênticas opiniões de jornalistas são corroboradas
por outras tão ou mais fidedignas e representativas, como, por exemplo, a do
próprio ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas: “A precariedade – tanto nas
suas formas objectivas, como a natureza do vínculo contratual ou a forma de
nomeação ou a forma de nomeação das chefias, como subjectivas, isto é, a
própria percepção de insegurança face à ameaça de uma reestruturação – tem
consequências devastadoras para os jornalistas e para a própria democracia,
porque explora o medo, condiciona a vontade e inibe as consciências” (Alfredo
Maia – “Jornalistas: trabalhadores entre poderes” - revista Vértice
– Setembro-Outubro 2008).
De facto,
quem acompanha de perto e com regularidade e continuidade o que se passa nos
locais de trabalho sabe que onde prossegue a fragilização dos trabalhadores nas
relações de trabalho (mormente pela precariedade), muitas pessoas, para lhe
reconhecerem (remunerarem) o trabalho que (disciplinarmente) “têm de fazer”,
deixam de se poderem reconhecer (realizar) nesse trabalho. Profissionalmente e,
até, ética e deontologicamente.
Com efeito,
no trabalho, mormente em profissões que requerem autonomia e de grande
intervenção social, muitos empregadores ou seus representantes há (nas empresas
e, mesmo, na administração pública) que exigem às pessoas não apenas
produtividade mas, mais do que isso, “productibilidade”, capacidade de serem
não só produtivos mas “produzidos”, “flexíveis”, “adaptáveis”, “moldáveis”.
Mesmo que, nalguns casos, isso “afecte o cumprimento dos preceitos éticos
e deontológicos no desempenho da profissão” (como é indiciado neste inquérito
sobre os jornalistas) ou, até, as regras legais da leal concorrência
empresarial.
Por outra
óptica (ainda que muito associada), seja qual for a profissão e a actividade em
que esta se integre, a estabilidade do emprego, bem como a qualidade das
condições de trabalho são indissociáveis não apenas da qualificação e
realização profissional dos trabalhadores (que, atenção, a par da saúde, são
condição da sua “empregabilidade” ou “reempregabilidade”) mas, também, da
qualidade do resultado (produto ou serviço) do seu trabalho (que, atenção, é
condição da produtividade e qualidade do produto ou serviço – logo, da
“competitividade” - das empresas ou outras organizações empregadoras). Isto é
especialmente relevante quando está em causa um serviço de interesse público,
(um “quarto poder”), como é o caso, por definição, da comunicação social.
Daí que,
quer do ponto de vista profissional, quer do ponto de vista social e político
(e, até, do ponto de vista “meramente” económico), não possa deixar de ser
socialmente (publicamente) percebida e reflectida (e agida…) esta relação
íntima, biunívoca, directamente proporcional entre a estabilidade e qualidade
do trabalho (também) dos jornalistas e a qualidade da comunicação social. Sim,
o trabalho, o trabalho em geral, como se consubstanciando este nas pessoas que
trabalham e em que condições trabalham, carece de ser mais objecto (e
objectivo) da comunicação social. Inclusive, claro, o trabalho de jornalismo
que (se) realiza (n)a comunicação social.
Porque, em
síntese, a melhoria da qualidade do trabalho dos jornalistas, do trabalho de(o)
jornalismo, depende muito também da melhoria da qualidade do jornalismo de(o)
trabalho. E vice-versa.
Público, 5-1-2017
João Fraga de Oliveira (Inspector do trabalho aposentado)
O que sucede com os jornais,naturalmente com jornalistas e todo o pessoal de apoio à edição, é o mesmo que sucede na grande maioria das profissões, pois a tecnologia criou um mundo diferente que se movimenta de formas distintas das tradicionais. Os discos de vinil desapareceram e toda a indústria a eles ligados morreu. Os livros e os jornais são cada vez menos, porque são substituídos por outros produtos e toda a indústria a montante vai fenecendo. Os exemplos são inúmeros e o dito progresso trás estas alterações que parecem violentas. Contudo, pior que todos este tipo de exemplos, o viver um clima onde os afectos começam a estar ausentes, é o problema mais grave.
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