“O problema é que a pressão sobre
os cuidados primários para despachar doentes não deixa aos médicos tempo
suficiente para conversar com a pessoa durante dez ou quinze minutos para
perceber a origem da insónia ou da ansiedade. A solução, nestes casos, é
recorrer à via medicamentosa. E a consequência? Uma sangria de dinheiro…”
Cito
o professor Álvaro Carvalho, director do Programa Nacional para
a Saúde Mental, da Direcção-Geral de Saúde (DGS), tal como é citado num artigo
do jornal Público de 7/4/2017 (“Ansiolíticos a mais? Médicos de família poderão
ter restrições”).
Portugal
é o país da Europa com maior consumo de psico-fármacos (sobretudo, anti-depressores,
ansiolíticos, sedativos e hipnóticos). Em 20115, venderam-se 11 milhões de
embalagens destes medicamentos e, em 2016, foram 10,6 milhões.
Em
Portugal, 35% das doenças são do foro mental, há 578.000 pessoas com depressão
e 502.000 em situação de ansiedade patológica.
O artigo, no Público, sugere que, nos cuidados de saúde
primários, há um “abuso” na prescrição clínica deste tipo de medicamentos.
Com certeza que muitas causas de ordem individual e ambiental
(familiar, social, etc) haverá para mais de um terço dos portugueses sofrer de
doenças do foro mental.
Mas há uma pergunta pertinente, também neste domínio: O
trabalho, as condições materiais, organizacionais e sociais em que é realizado
nos locais de trabalho, não tem nada a ver com isto?
Ninguém
duvida da centralidade económica e social que o trabalho tem nas famílias e na
sociedade. Mas, para além dessa centralidade económica e social, o trabalho, na
vida de cada um, é um factor de equilíbrio físico e mental, não só porque lhe garante
o sustento físico mas porque lhe pode (deve) ser uma via de qualificação e
responsabilização, de reconhecimento, de realização, de auto-estima, de
integração e desenvolvimento pessoal, profissional e social, de evolução e
motivação intelectual.
“O
trabalho dá saúde”, diz o provérbio. Sim, sem dúvida. Mas pode haver um reverso
do provérbio, na medida em que o trabalho pode também ser um factor de sofrimento
físico e, mentalmente, de isolamento, depressão, doença e até morte.
Isto
pode parecer paradoxal, porque o mesmo se pode dizer do desemprego. Mas
compreende-se, porque, afinal, o desemprego mais não é do que a privação do
trabalho.
Aliás,
também no domínio da saúde (inclusive da saúde mental), as vítimas do
desemprego são os desempregados … e os empregados. Isto porque, sob a ameaça do
desemprego, com frágil suporte social deste e, em regra, com vínculos contratuais
precários, nos locais de trabalho (empresas, administração pública e outras
organizações empregadoras), a tudo se sujeitam e são sujeitos muitos
trabalhadores, mesmo com deterioração progressiva das condições de trabalho. Com
graves riscos para a saúde, inclusive para a saúde mental.
Riscos
físicos, químicos e biológicos, implicados pelos materiais, equipamentos e
processos de trabalho utilizados. Mas também, cada vez mais, riscos psicossociais
suscitados pelos “novos” modelos e processos de organização do trabalho e de
gestão: sobreintensificação do trabalho (ritmo e duração), base de muitas
situações de esgotamento (burnout)
que têm sido denunciadas (inclusive entre professores, enfermeiros e até
médicos), pressão psicológica e fomento da permanente competição individual, desorganizacão
da produção e do trabalho, desregulação de horários de trabalho, isolamento profissional
e social, (tele)invasão da vida familiar e, até, cada vez mais frequentemente, sob
várias formas, assédio moral, indignificação, ostracização ou violentação
psicológica das pessoas.
Mais,
não obstante seja um domínio em que é necessário cuidado quanto a conclusões
definitivas, há estudos que indiciam o aumento progressivo de suicídios e,
nalguns casos, com causas indiciadas (ou até declaradas, como nos casos, vindos
a público, de vários polícias) de conexão com as (más) condições de trabalho
das vítimas.
De
qualquer modo, se em Portugal pouco se sabe sobre isso de forma sustentada (o
que, por si só, é ainda mais preocupante), por exemplo, em França, foi a pressão
sindical, a investigação académica e a denúncia da comunicação social e de
outras entidades que permitiu a percepção pública de dezenas de casos,
envolvendo várias empresas (por exemplo em 2010 na France Telecom-Orange e em
2007 na Renault- Guyancourt-Paris e noutras empresas), de suicídios de
trabalhadores cujas causas foram, de algum modo, associados às condições de
trabalho. Recentemente, foram mesmo publicadas sentenças judiciais (com as
respectivas consequências penais e cíveis de responsabilização e indemnização)
considerando esses suicídios como acidentes de trabalho.
Mas
mesmo que possa (ainda) não haver uma sólida sustentação factual, científica e
jurídica para, generalizadamente, fazer a conexão entre suicídio (também) com
condições de trabalho, é pelo menos medida de precaução admitir que (também) este
domínio carece de atenção, análise e adequada reflexão (e acção), pelo menos
nas áreas da Saúde Pública e do Emprego e, em geral, na perspectiva social e
política.
Até
porque, entretanto, sob a bandeira do “combate ao desemprego”, continua (ainda)
a haver por aí quem relativize, banalize, o impacto humano e social da
degradação das condições de trabalho sob a “teoria” de que “mais vale ter um
emprego precário do que não ter emprego nenhum”, escamoteando as consequências
humanas e sociais (designadamente, na saúde das pessoas) que a degradação das
condições de trabalho (que, além de muito ser induzida pela precariedade dos
vínculos laborais, é, em si, mais uma das formas de precariedade nas relações
de trabalho) tem na vida de cada um e na sociedade.
Sim,
é certo, o desemprego, por si, é um factor de risco para a saúde (e
especialmente para a saúde mental) das pessoas. Mas a progressiva perda de
qualidade do emprego, muito consubstanciada e derivada da precariedade laboral (que
projecta outras precariedades, pessoais, familiares, sociais…) e,
associadamente, da sobreintensificação do trabalho, em geral, da degradação das
condições materiais, organizacionais e sociais em que o trabalho é realizado, é,
para além de um factor de desqualificação profissional e organizacional, uma
das determinantes da deterioração da saúde das pessoas. Da saúde física e da
saúde mental.
Sim,
como principal base de sustento, de realização profissional e pessoal, de integração
e reconhecimento social, o trabalho é uma condição de equilíbrio, de saúde
física e mental. Contudo, como fonte de desgaste físico e mental, de
esgotamento, de submissão, de injustiça, de incerteza, de medo, de
ostracização, de indignidade, o trabalho é uma condição de doença. Não apenas do
ponto de vista físico, mas, ainda que mais subreptícia e diferidamente, de
doença mental.
Voltando
à citação do início deste texto, surge, então, a pertinência de outras perguntas:
-
Não estará o alegado “abuso” de prescrição de psico-fármacos nos cuidados de
saúde primários relacionado com o facto de, em muitos casos, à condição mental
dos doentes objecto desse tal “abuso” de prescrição clínica, estar subjacente o
abuso a que a sua saúde mental está a ser ou foi sujeita nas condições em que
realizam o seu trabalho?
- Será que “a pressão sobre os
cuidados primários para despachar doentes não deixa aos médicos tempo
suficiente para conversar com a pessoa para perceber…” (também) isto?
- E, percebendo-o, têm os médicos
tempo (nem sequer se põe a hipótese de não terem inerente formação e
sensibilidade) para, também neste domínio da saúde mental (e não só), poderem
analisar a possibilidade de uma conexão entre a condição de (falta de ) saúde do
doente e as condições de trabalho a que o doente está ou esteve sujeito?
- E, assim, desencadearem a articulação
entre Saúde Pública e Saúde no Trabalho, como a Lei prescreve: “Sempre que a
repercussão do trabalho e das condições em que o mesmo é prestado se revelar
nociva para a saúde do trabalhador, o médico do trabalho (…), se o estado de
saúde o justificar, deve solicitar o seu acompanhamento pelo médico assistente
do centro de saúde ou outro médico indicado pelo trabalhador”[1]; “O
médico participa ao serviço com competências na área da protecção contra riscos
profissionais todos os casos clínicos em que seja de presumir a existência de
doença profissional[2]?
Volto, aqui, a outra pergunta
pertinente, aquela primeira pergunta que, há quase quatro séculos, quando
qualquer doente o procurava no seu consultório, um médico italiano, Bernardino Ramazzini, precursor da
Medicina do Trabalho[3],
fazia aos seus doentes: “O que é que faz?”
Será que, também porque “a pressão
sobre os cuidados primários para despachar doentes não deixa aos médicos tempo
suficiente”, também esta pergunta é pouco feita nos centros de saúde e outras
unidades de saúde, para além da tradicional (e, claro, necessaríssima) pergunta
“O que é que sente?”
Provavelmente, agora, o Dr.
Ramazzini, sabendo o que se passa (também) em Portugal no domínio da saúde
mental, também ele, sob a “ameaça” de que “os médicos de família poderão ter
restrições” na prescrição de psico-fármacos e com a acentuada noção que tinha
da íntima relação entre trabalho e saúde, para além da importância que, como
médico, também atribuiria à pergunta “O que é que sente?”, com certeza daria ainda
mais importância à íntima relação que pode haver entre essa clássica pergunta
que todos ouvimos (e ainda bem) nos centros de saúde e aquela que, há cerca de
400 anos, já então, era a primeira que fazia aos seus doentes: “O que é que
faz?”.
E, mais, talvez desenvolvesse
consequentemente (também) esta última pergunta e lhes perguntasse, ainda: “Onde
faz?”, “Como faz?”, Com que é que faz?”, “Com quem faz”; “Quando faz?”, “Quanto
faz?”…
João Fraga de Oliveira
[1] Artº 11º -5 do Regime Jurídico
da Promoção da Segurança e Saúde no Trabalho –Lei 102/2009, de 10/9
[2] Artº 142º -1 do Regime de
Reparação de Acidentes e Doenças Profissionais-Lei 98/2009, de 4/9
[3]
Ao
estudar as doenças (da pele e dos olhos, sobretudo) dos cloaqueiros, os
trabalhadores que limpavam as cloacas das ruas onde, então, se acumulavam o lixo e os dejectos.
(Publicado no Público online Opinião – em 11 de Abril
de 2017)
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