quarta-feira, 12 de abril de 2017

Saúde mental e trabalho: "O que é que sente?" e "O que é que faz?"




“O problema é que a pressão sobre os cuidados primários para despachar doentes não deixa aos médicos tempo suficiente para conversar com a pessoa durante dez ou quinze minutos para perceber a origem da insónia ou da ansiedade. A solução, nestes casos, é recorrer à via medicamentosa. E a consequência? Uma sangria de dinheiro…”

Cito o professor Álvaro Carvalho, director do Programa Nacional para a Saúde Mental, da Direcção-Geral de Saúde (DGS), tal como é citado num artigo do jornal Público de 7/4/2017 (“Ansiolíticos a mais? Médicos de família poderão ter restrições”).

Portugal é o país da Europa com maior consumo de psico-fármacos (sobretudo, anti-depressores, ansiolíticos, sedativos e hipnóticos). Em 20115, venderam-se 11 milhões de embalagens destes medicamentos e, em 2016, foram 10,6 milhões.

Em Portugal, 35% das doenças são do foro mental, há 578.000 pessoas com depressão e 502.000 em situação de ansiedade patológica.

O artigo, no Público, sugere que, nos cuidados de saúde primários, há um “abuso” na prescrição clínica deste tipo de medicamentos.

Com certeza que muitas causas de ordem individual e ambiental (familiar, social, etc) haverá para mais de um terço dos portugueses sofrer de doenças do foro mental.

Mas há uma pergunta pertinente, também neste domínio: O trabalho, as condições materiais, organizacionais e sociais em que é realizado nos locais de trabalho, não tem nada a ver com isto?

Ninguém duvida da centralidade económica e social que o trabalho tem nas famílias e na sociedade. Mas, para além dessa centralidade económica e social, o trabalho, na vida de cada um, é um factor de equilíbrio físico e mental, não só porque lhe garante o sustento físico mas porque lhe pode (deve) ser uma via de qualificação e responsabilização, de reconhecimento, de realização, de auto-estima, de integração e desenvolvimento pessoal, profissional e social, de evolução e motivação intelectual.

“O trabalho dá saúde”, diz o provérbio. Sim, sem dúvida. Mas pode haver um reverso do provérbio, na medida em que o trabalho pode também ser um factor de sofrimento físico e, mentalmente, de isolamento, depressão, doença e até morte.

Isto pode parecer paradoxal, porque o mesmo se pode dizer do desemprego. Mas compreende-se, porque, afinal, o desemprego mais não é do que a privação do trabalho.

Aliás, também no domínio da saúde (inclusive da saúde mental), as vítimas do desemprego são os desempregados … e os empregados. Isto porque, sob a ameaça do desemprego, com frágil suporte social deste e, em regra, com vínculos contratuais precários, nos locais de trabalho (empresas, administração pública e outras organizações empregadoras), a tudo se sujeitam e são sujeitos muitos trabalhadores, mesmo com deterioração progressiva das condições de trabalho. Com graves riscos para a saúde, inclusive para a saúde mental.

Riscos físicos, químicos e biológicos, implicados pelos materiais, equipamentos e processos de trabalho utilizados. Mas também, cada vez mais, riscos psicossociais suscitados pelos “novos” modelos e processos de organização do trabalho e de gestão: sobreintensificação do trabalho (ritmo e duração), base de muitas situações de esgotamento (burnout) que têm sido denunciadas (inclusive entre professores, enfermeiros e até médicos), pressão psicológica e fomento da permanente competição individual, desorganizacão da produção e do trabalho, desregulação de horários de trabalho, isolamento profissional e social, (tele)invasão da vida familiar e, até, cada vez mais frequentemente, sob várias formas, assédio moral, indignificação, ostracização ou violentação psicológica das pessoas.

Mais, não obstante seja um domínio em que é necessário cuidado quanto a conclusões definitivas, há estudos que indiciam o aumento progressivo de suicídios e, nalguns casos, com causas indiciadas (ou até declaradas, como nos casos, vindos a público, de vários polícias) de conexão com as (más) condições de trabalho das vítimas.

De qualquer modo, se em Portugal pouco se sabe sobre isso de forma sustentada (o que, por si só, é ainda mais preocupante), por exemplo, em França, foi a pressão sindical, a investigação académica e a denúncia da comunicação social e de outras entidades que permitiu a percepção pública de dezenas de casos, envolvendo várias empresas (por exemplo em 2010 na France Telecom-Orange e em 2007 na Renault- Guyancourt-Paris e noutras empresas), de suicídios de trabalhadores cujas causas foram, de algum modo, associados às condições de trabalho. Recentemente, foram mesmo publicadas sentenças judiciais (com as respectivas consequências penais e cíveis de responsabilização e indemnização) considerando esses suicídios como acidentes de trabalho.

Mas mesmo que possa (ainda) não haver uma sólida sustentação factual, científica e jurídica para, generalizadamente, fazer a conexão entre suicídio (também) com condições de trabalho, é pelo menos medida de precaução admitir que (também) este domínio carece de atenção, análise e adequada reflexão (e acção), pelo menos nas áreas da Saúde Pública e do Emprego e, em geral, na perspectiva social e política.

Até porque, entretanto, sob a bandeira do “combate ao desemprego”, continua (ainda) a haver por aí quem relativize, banalize, o impacto humano e social da degradação das condições de trabalho sob a “teoria” de que “mais vale ter um emprego precário do que não ter emprego nenhum”, escamoteando as consequências humanas e sociais (designadamente, na saúde das pessoas) que a degradação das condições de trabalho (que, além de muito ser induzida pela precariedade dos vínculos laborais, é, em si, mais uma das formas de precariedade nas relações de trabalho) tem na vida de cada um e na sociedade.

Sim, é certo, o desemprego, por si, é um factor de risco para a saúde (e especialmente para a saúde mental) das pessoas. Mas a progressiva perda de qualidade do emprego, muito consubstanciada e derivada da precariedade laboral (que projecta outras precariedades, pessoais, familiares, sociais…) e, associadamente, da sobreintensificação do trabalho, em geral, da degradação das condições materiais, organizacionais e sociais em que o trabalho é realizado, é, para além de um factor de desqualificação profissional e organizacional, uma das determinantes da deterioração da saúde das pessoas. Da saúde física e da saúde mental.

Sim, como principal base de sustento, de realização profissional e pessoal, de integração e reconhecimento social, o trabalho é uma condição de equilíbrio, de saúde física e mental. Contudo, como fonte de desgaste físico e mental, de esgotamento, de submissão, de injustiça, de incerteza, de medo, de ostracização, de indignidade, o trabalho é uma condição de doença. Não apenas do ponto de vista físico, mas, ainda que mais subreptícia e diferidamente, de doença mental.

Voltando à citação do início deste texto, surge, então, a pertinência de outras perguntas:

- Não estará o alegado “abuso” de prescrição de psico-fármacos nos cuidados de saúde primários relacionado com o facto de, em muitos casos, à condição mental dos doentes objecto desse tal “abuso” de prescrição clínica, estar subjacente o abuso a que a sua saúde mental está a ser ou foi sujeita nas condições em que realizam o seu trabalho?

- Será que “a pressão sobre os cuidados primários para despachar doentes não deixa aos médicos tempo suficiente para conversar com a pessoa para perceber…” (também) isto?

- E, percebendo-o, têm os médicos tempo (nem sequer se põe a hipótese de não terem inerente formação e sensibilidade) para, também neste domínio da saúde mental (e não só), poderem analisar a possibilidade de uma conexão entre a condição de (falta de ) saúde do doente e as condições de trabalho a que o doente está ou esteve sujeito?

- E, assim, desencadearem a articulação entre Saúde Pública e Saúde no Trabalho, como a Lei prescreve: “Sempre que a repercussão do trabalho e das condições em que o mesmo é prestado se revelar nociva para a saúde do trabalhador, o médico do trabalho (…), se o estado de saúde o justificar, deve solicitar o seu acompanhamento pelo médico assistente do centro de saúde ou outro médico indicado pelo trabalhador”[1]; “O médico participa ao serviço com competências na área da protecção contra riscos profissionais todos os casos clínicos em que seja de presumir a existência de doença profissional[2]?

Volto, aqui, a outra pergunta pertinente, aquela primeira pergunta que, há quase quatro séculos, quando qualquer doente o procurava no seu consultório, um médico  italiano, Bernardino Ramazzini, precursor da Medicina do Trabalho[3], fazia aos seus doentes: “O que é que faz?”

Será que, também porque “a pressão sobre os cuidados primários para despachar doentes não deixa aos médicos tempo suficiente”, também esta pergunta é pouco feita nos centros de saúde e outras unidades de saúde, para além da tradicional (e, claro, necessaríssima) pergunta “O que é que sente?”

Provavelmente, agora, o Dr. Ramazzini, sabendo o que se passa (também) em Portugal no domínio da saúde mental, também ele, sob a “ameaça” de que “os médicos de família poderão ter restrições” na prescrição de psico-fármacos e com a acentuada noção que tinha da íntima relação entre trabalho e saúde, para além da importância que, como médico, também atribuiria à pergunta “O que é que sente?”, com certeza daria ainda mais importância à íntima relação que pode haver entre essa clássica pergunta que todos ouvimos (e ainda bem) nos centros de saúde e aquela que, há cerca de 400 anos, já então, era a primeira que fazia aos seus doentes: “O que é que faz?”.

E, mais, talvez desenvolvesse consequentemente (também) esta última pergunta e lhes perguntasse, ainda: “Onde faz?”, “Como faz?”, Com que é que faz?”, “Com quem faz”; “Quando faz?”, “Quanto faz?”…

João Fraga de Oliveira

[1] Artº 11º -5 do Regime Jurídico da Promoção da Segurança e Saúde no Trabalho –Lei 102/2009, de 10/9
[2] Artº 142º -1 do Regime de Reparação de Acidentes e Doenças Profissionais-Lei 98/2009, de 4/9
[3]  Ao estudar as doenças (da pele e dos olhos, sobretudo) dos cloaqueiros, os trabalhadores que limpavam as cloacas das ruas onde, então, se acumulavam  o lixo e os dejectos.

(Publicado no Público online Opinião – em 11 de Abril de 2017)

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