terça-feira, 9 de maio de 2017


Precariedades

João Fraga de Oliveira

A precariedade laboral é um dos assuntos que mais tem concentrado a atenção do debate social e político. Contudo, há quem considere a precariedade laboral um sound byte, um “chavão”[1], dando a ideia de considerar este conceito absurdo, vago, excessivo.

Segundo as estatísticas oficiais, Portugal é, na União Europeia, um dos países com mais elevada proporção de contratos de trabalho a termo ou temporários. Depois, é preciso ter em conta que, para além das estatísticas oficiais destas situações de trabalhadores com vínculo precário, há muitas situações de precariedade informal e ilegal (e que, aliás, agrava as consequências nefastas desta condição laboral).

De facto, muita empresa há em que todos, mas todos, os trabalhadores estão contratados a termo ou por contrato de trabalho temporário, se bem que, quanto a muitos deles, não obstante essa contratação aparente reunir os requisitos formais, não respeita as condições de facto legalmente previstas, porque ocupam postos de trabalho permanentes, com sucessivas substituições de outros (ou mesmo dos próprios) no mesmo posto de trabalho[2].

Apesar de tal passar muito despercebido, um dos efeitos negativos do aumento do emprego precário (cuja génese legal, em 1976, recorde-se, já assentou no argumento da “criação de emprego”[3]) é a perversa relação entre desemprego e precariedade, em decurso da qual, por mais contraditório que pareça, o aumento do emprego, porque precário, pode potenciar … o aumento do desemprego.

É que nas situações de emprego precário não só os postos de trabalho são, em si, mais desqualificados como não é possível uma lógica qualificante e profissionalizante na sequência errática, empresa a empresa, dos contratos que cada trabalhador vai conseguindo, em muito poucas situações chegando a haver integração estável. Além disso, na contratação de trabalhadores a termo ou temporários, em regra, não é tanto a profissão que interessa mas, sobretudo, a tarefa temporária que é preciso “despachar”. O que esvazia as experiências profissionais do seu potencial qualificante e profissionalizante.

Tudo isto, associado a piores condições de prevenção dos riscos para a saúde (física e mental) no trabalho que, habitualmente, também diferencia nos locais de trabalho os trabalhadores não permanentes, leva as pessoas a perderem “empregabilidade”, isto é, condições profissionais, de qualificação e de saúde para se (re)empregarem. E a caírem frequentemente (e quanto mais a idade avançar) no desemprego de cada vez mais de longa duração, crónico.

Por outro lado, agora numa perspectiva de oferta de emprego, as condições de produtividade e qualidade da produção (bens ou serviços) são indissociáveis da qualificação dos trabalhadores e das condições de trabalho. Ora, a precariedade do trabalho, influindo negativamente nestas duas vertentes, vai, cedo ou tarde, influenciar negativamente a produtividade e qualidade da produção. E, daí, a competitividade e sustentabilidade das empresas. Logo, a (im)possibilidade de estas criarem (ou, pelo menos, manterem) o emprego.

É um facto que desemprego gera precariedade, desde logo porque as medidas de “flexibilização do mercado de trabalho” que induzem o aumento do emprego precário são apresentadas como medidas de “combate ao desemprego”. Mas, como se viu, de facto, o aumento do emprego precário, ainda que menos directa e imediatamente (mas pelo menos indirecta e mais estruturalmente), pode também ser um dos factores do desemprego.

Em síntese, existe uma íntima relação entre desemprego e precariedade do (e no) trabalho, visto que, muito por via da precariedade (e, em geral, da falta de qualidade do emprego) como “política” de emprego, alimentando-se a si próprio, desemprego gera desemprego. Por isso, com o alto nível de desemprego que (ainda) se mantém, é preciso que, económica, social e politicamente, se dê mais atenção à melhoria da qualidade do emprego, designadamente, à estabilidade e qualidade das relações e condições de trabalho.

Aliás, é a própria Organização Internacional do Trabalho (OIT) que, há muito, vem a alertar para isso, ao inserir na definição de “trabalho digno” (decent work) a estabilidade e qualidade do emprego e ao relacionar a aplicação deste conceito com a diminuição do desemprego.[4]

Para além do crescimento desta perversa relação de facto entre precariedade laboral e desemprego[5], decorrente da destruição de emprego permanente e aumento de emprego não permanente, pelo menos nas últimas duas décadas[6], associadamente, foi prosseguida uma orientação política e gestionária no sentido da individualização (legal e de facto) das relações de trabalho.

Ora, essa crescente individualização das relações de trabalho é ao mesmo tempo causa e efeito não apenas da “aceitação” pelos trabalhadores (pela sua consequente fragilização dos nas relações laborais) de contratos de trabalho não permanentes, inclusive em condições ilegais mas, também, de um ponto de vista mais social, colectivo, da quebra de sindicalização e do enfraquecimento da negociação e contratação colectiva.

Aliás, já é muito claro que as consequências da precariedade dos vínculos laborais, em geral da falta de estabilidade do (no) empego), não se resumem à vertente individual e laboralmente objectiva da condição de cada trabalhador nessa situação.

Tem, também, uma natureza colectiva, de índole (mais) subjectiva mas com objectivas consequências sociais mais generalizadas. Num livro de 1998[7], ao qual a situação do mundo do trabalho tem vindo a reforçar a actualidade e acuidade, Pierre Bourdieu sintetizava bem esta nefasta projecção laboral e social generalizada da precariedade laboral como factor de incerteza e insegurança: “A insegurança objectiva é a base de uma insegurança subjectiva generalizada que afecta hoje, no coração de uma economia altamente desenvolvida, o conjunto dos trabalhadores, incluindo aqueles que não foram ou ainda não foram directamente atingidos”.

De facto, quem acompanha de perto e continuadamente o que se passa nos locais e trabalho sabe bem que a condição de instabilidade e incerteza em que se encontram os trabalhadores com vínculo laboral não permanente é algo que ali tem implicações concretas nas situações e condições de trabalho[8] e que, mesmo, se repercute humana, social e economicamente aquém e para além dos próprios locais de trabalho[9].

É muito a condição de precários (ainda que em condições legais de contratação a termo ou de trabalho temporário) que, nos locais de trabalho, obriga muitos trabalhadores a “aceitarem” tarefas mais insalubres, penosas ou de trabalho (sobre)intensificado (em ritmo e ou duração), com acréscimo de riscos de doença profissional ou acidente de trabalho. Portanto, concretamente, pondo em risco a saúde, a integridade física ou, mesmo, a sua vida e a de outros que com eles trabalham.

É também essa condição de trabalhador com vínculo precário que explica a “aceitação” muda e “conformada” de situações de violentação da dignidade das pessoas, de assédio moral e até de violência (psicológica e, mesmo, física) nos locais de trabalho.

Para além disso, não são vagas nem absurdas (ainda que possam ser indirectas e diferidas) as consequências que a precariedade laboral gera no domínio social, por exemplo, como factor inibidor da constituição de família e da natalidade. E, até, no domínio da participação social e política.

Estas (várias) facetas da precariedade laboral carecem de análise (ainda) mais específica e integrada, bem como de reflexão (e acção…) pluridisciplinar, do ponto de vista gestionário, económico, social e político.

Não é em vão que se afirma que o trabalho (e, associadamente, a sua privação, o desemprego) é central na vida das pessoas e na sociedade.

Por isso, a expressão “precariedade laboral”, que tantos julgam um “chavão”, excessiva, verdadeiramente, pode até induzir uma interpretação restritiva, visto que as consequências da precariedade transcendem o significado da adjectivação (“laboral”), projectando-se muito para além dos locais de trabalho. Não apenas na condição humana, familiar e social das pessoas mas, também, na condição económica e organizacional das empresas e, daí, na sociedade, em termos económicos, sociais e políticos.

“Precariedade”?. Talvez se ajuste melhor o plural: precariedades.

Inspector do trabalho (aposentado)

(texto enviado ao Público em 19/4/2017 – não publicado)



[1] “A casta” – Helena Matos – jornal Observador, 31/10/2016 -http://observador.pt/opiniao/a-casta/
[2] Que, assim, por isso mesmo, evidencia ser realmente um posto de trabalho permanente continuamente ocupado e reocupado por um trabalhador formal mas ilegalmente contratado a termo ou como temporário.
[3] O Decreto-Lei 781/76, de 28 de Outubro, pressupunha, no seu preâmbulo, que, ao instituir os “contratos a prazo”, tal  iria “propiciar, a breve trecho, um significativo aumento da oferta de emprego”.
[4] “(…) uma melhor qualidade do emprego pode ajudar a combater o desemprego ...” (“Enfrentar a crise do emprego em Portugal” - OIT - Lisboa, 4/11/2013).
[5] Relação que, como decorre do que precede, não obstante apresentada como inversamente proporcional (a precariedade dos vínculos laborais justificada gestionária e politicamente como meio de “combate ao desemprego”), é, de facto, estrutural e mediatamente, uma relação inversamente proporcional , visto que, como se viu, pelo menos a médio prazo, a precariedade é mais um dos factores de desemprego. E, vice-versa, o aumento de desemprego induz o aumento da precariedade.
[6] Muito em decurso de algumas disposições dos Códigos do trabalho de 2003 e 2009 e, mormente, das suas alterações de 2011, 2012 e 2013.
[7] Contre-feux - tradução portuguesa: “Contrafogos” – 1998, Celta Editora, Lisboa
[8] E inclusive na maior dificuldade na acção do competente sistema de controlo público, designadamente, na acção da Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT).
[9] Como escreveu Yves Clot, “o trabalho tem um braço longo” (La Fonction Psychologique du Travail PUF- Paris, 1999).

2 comentários:

  1. Meu Caro Amigo: estou totalmente de acordo com todas as verdades vertidas no seu excelente e explicativo texto.
    Claro está, que o PÚBLICO não o publicou, penso eu por o não querer fazer, publicando-o, mas talvez por ser longo de mais. Poderia reparti-lo por capítulos: Precariedade I, idem II; ....
    Um grande abraço para quem expôs tão bem o cancro que impende sobre quem vende o suor do seu trabalho.

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  2. Obrigado, amigo José. Mais, muito mais importante que a (não) publicação no Público é o seu comentário. Um abraço.

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