Precariedades
João Fraga
de Oliveira
A precariedade laboral é um dos assuntos que mais tem
concentrado a atenção do debate social e político. Contudo, há quem considere a
precariedade laboral um sound byte,
um “chavão”[1],
dando a ideia de considerar este conceito absurdo, vago, excessivo.
Segundo
as estatísticas oficiais, Portugal é, na União Europeia, um dos países com mais
elevada proporção de contratos de trabalho a termo ou temporários. Depois, é
preciso ter em conta que, para além das estatísticas oficiais destas situações
de trabalhadores com vínculo precário, há muitas situações de precariedade
informal e ilegal (e que, aliás, agrava as consequências nefastas desta
condição laboral).
De
facto, muita empresa há em que todos, mas todos, os trabalhadores estão
contratados a termo ou por contrato de trabalho temporário, se bem que, quanto
a muitos deles, não obstante essa contratação aparente reunir os requisitos
formais, não respeita as condições de facto legalmente previstas, porque ocupam
postos de trabalho permanentes, com sucessivas substituições de outros (ou
mesmo dos próprios) no mesmo posto de trabalho[2].
Apesar
de tal passar muito despercebido, um dos efeitos negativos do aumento do
emprego precário (cuja génese legal, em 1976, recorde-se, já assentou no
argumento da “criação de emprego”[3]) é
a perversa relação entre desemprego e precariedade, em decurso da qual, por
mais contraditório que pareça, o aumento do emprego, porque precário, pode potenciar
… o aumento do desemprego.
É que nas situações de emprego
precário não só os postos de trabalho são, em si, mais desqualificados como não
é possível uma lógica qualificante e profissionalizante na sequência errática,
empresa a empresa, dos contratos que cada trabalhador vai conseguindo, em muito
poucas situações chegando a haver integração estável. Além disso, na
contratação de trabalhadores a termo ou temporários, em regra, não é tanto a
profissão que interessa mas, sobretudo, a tarefa temporária que é preciso
“despachar”. O que esvazia as experiências profissionais do seu potencial
qualificante e profissionalizante.
Tudo isto, associado a piores
condições de prevenção dos riscos para a saúde (física e mental) no trabalho
que, habitualmente, também diferencia nos locais de trabalho os trabalhadores
não permanentes, leva as pessoas a perderem “empregabilidade”, isto é,
condições profissionais, de qualificação e de saúde para se (re)empregarem. E a
caírem frequentemente (e quanto mais a idade avançar) no desemprego de cada vez
mais de longa duração, crónico.
Por outro lado, agora numa
perspectiva de oferta de emprego, as condições de produtividade e qualidade da produção
(bens ou serviços) são indissociáveis da qualificação dos trabalhadores e das
condições de trabalho. Ora, a precariedade do trabalho, influindo negativamente
nestas duas vertentes, vai, cedo ou tarde, influenciar negativamente a produtividade
e qualidade da produção. E, daí, a competitividade e sustentabilidade das
empresas. Logo, a (im)possibilidade de estas criarem (ou, pelo menos, manterem)
o emprego.
É um facto que desemprego gera
precariedade, desde logo porque as medidas de “flexibilização do mercado de
trabalho” que induzem o aumento do emprego precário são apresentadas como
medidas de “combate ao desemprego”. Mas, como se viu, de facto, o aumento do
emprego precário, ainda que menos directa e imediatamente (mas pelo menos
indirecta e mais estruturalmente), pode também ser um dos factores do
desemprego.
Em síntese, existe uma íntima
relação entre desemprego e precariedade do (e no) trabalho, visto que, muito
por via da precariedade (e, em geral, da falta de qualidade do emprego) como
“política” de emprego, alimentando-se a si próprio, desemprego gera desemprego.
Por isso, com o alto nível de desemprego que (ainda) se mantém, é preciso que,
económica, social e politicamente, se dê mais atenção à melhoria da qualidade
do emprego, designadamente, à estabilidade e qualidade das relações e condições
de trabalho.
Aliás, é a própria Organização Internacional
do Trabalho (OIT) que, há muito, vem a alertar para isso, ao inserir na
definição de “trabalho digno” (decent
work) a estabilidade e qualidade do emprego e ao relacionar a aplicação deste
conceito com a diminuição do desemprego.[4]
Para
além do crescimento desta perversa relação de facto entre precariedade laboral
e desemprego[5],
decorrente da destruição de emprego permanente e aumento de emprego não
permanente, pelo menos nas últimas duas décadas[6], associadamente,
foi prosseguida uma orientação política e gestionária no sentido da individualização
(legal e de facto) das relações de trabalho.
Ora,
essa crescente individualização das relações de trabalho é ao mesmo tempo causa
e efeito não apenas da “aceitação” pelos trabalhadores (pela sua consequente
fragilização dos nas relações laborais) de contratos de trabalho não
permanentes, inclusive em condições ilegais mas, também, de um ponto de vista
mais social, colectivo, da quebra de sindicalização e do enfraquecimento da negociação
e contratação colectiva.
Aliás, já é muito claro que as
consequências da precariedade dos vínculos laborais, em geral da falta de
estabilidade do (no) empego), não se resumem à vertente individual e
laboralmente objectiva da condição de cada trabalhador nessa situação.
Tem, também, uma natureza colectiva, de
índole (mais) subjectiva mas com objectivas consequências sociais mais
generalizadas. Num livro de
1998[7],
ao qual a situação do mundo do trabalho tem vindo a reforçar a actualidade e
acuidade, Pierre Bourdieu sintetizava bem esta nefasta projecção laboral e
social generalizada da precariedade laboral como factor de incerteza e
insegurança: “A insegurança objectiva é a base de uma insegurança subjectiva
generalizada que afecta hoje, no coração de uma economia altamente desenvolvida,
o conjunto dos trabalhadores, incluindo aqueles que não foram ou ainda não
foram directamente atingidos”.
De facto, quem acompanha de perto e continuadamente o
que se passa nos locais e trabalho sabe bem que a condição de instabilidade e
incerteza em que se encontram os trabalhadores com vínculo laboral não
permanente é algo que ali tem implicações concretas nas situações e condições
de trabalho[8]
e que, mesmo, se repercute humana, social e economicamente aquém e para além dos
próprios locais de trabalho[9].
É muito a condição de precários (ainda que em
condições legais de contratação a termo ou de trabalho temporário) que, nos
locais de trabalho, obriga muitos trabalhadores a “aceitarem” tarefas mais
insalubres, penosas ou de trabalho (sobre)intensificado (em ritmo e ou
duração), com acréscimo de riscos de doença profissional ou acidente de
trabalho. Portanto, concretamente, pondo em risco a saúde, a integridade física
ou, mesmo, a sua vida e a de outros que com eles trabalham.
É também essa condição de trabalhador com vínculo
precário que explica a “aceitação” muda e “conformada” de situações de
violentação da dignidade das pessoas, de assédio moral e até de violência
(psicológica e, mesmo, física) nos locais de trabalho.
Para além disso, não são vagas nem absurdas (ainda que
possam ser indirectas e diferidas) as consequências que a precariedade laboral
gera no domínio social, por exemplo, como factor inibidor da constituição de
família e da natalidade. E, até, no domínio da participação social e política.
Estas
(várias) facetas da precariedade laboral carecem de análise (ainda) mais
específica e integrada, bem como de reflexão (e acção…) pluridisciplinar, do
ponto de vista gestionário, económico, social e político.
Não é em vão que se afirma que o
trabalho (e, associadamente, a sua privação, o desemprego) é central na vida
das pessoas e na sociedade.
Por isso, a expressão “precariedade
laboral”, que tantos julgam um “chavão”, excessiva, verdadeiramente, pode até induzir
uma interpretação restritiva, visto que as consequências da precariedade
transcendem o significado da adjectivação (“laboral”), projectando-se muito para
além dos locais de trabalho. Não apenas na condição humana, familiar e social
das pessoas mas, também, na condição económica e organizacional das empresas e,
daí, na sociedade, em termos económicos, sociais e políticos.
“Precariedade”?. Talvez se ajuste
melhor o plural: precariedades.
Inspector do trabalho (aposentado)
(texto enviado ao Público em 19/4/2017 – não publicado)
[1] “A casta” – Helena Matos – jornal
Observador, 31/10/2016 -http://observador.pt/opiniao/a-casta/
[2]
Que,
assim, por isso mesmo, evidencia ser realmente um posto de trabalho permanente
continuamente ocupado e reocupado por um trabalhador formal mas ilegalmente
contratado a termo ou como temporário.
[3] O Decreto-Lei 781/76, de 28 de
Outubro, pressupunha, no seu preâmbulo, que, ao instituir os “contratos a
prazo”, tal iria “propiciar, a breve
trecho, um significativo aumento da oferta de emprego”.
[4]
“(…) uma melhor qualidade do emprego
pode ajudar a combater o desemprego ...” (“Enfrentar a
crise do emprego em Portugal” - OIT - Lisboa, 4/11/2013).
[5] Relação que, como decorre do que
precede, não obstante apresentada como inversamente proporcional (a
precariedade dos vínculos laborais justificada gestionária e politicamente como
meio de “combate ao desemprego”), é, de facto, estrutural e mediatamente, uma
relação inversamente proporcional , visto que, como se viu, pelo menos a médio
prazo, a precariedade é mais um dos factores de desemprego. E, vice-versa, o
aumento de desemprego induz o aumento da precariedade.
[6] Muito em decurso de algumas
disposições dos Códigos do trabalho de 2003 e 2009 e, mormente, das suas
alterações de 2011, 2012 e 2013.
[7] Contre-feux - tradução portuguesa: “Contrafogos” – 1998, Celta
Editora, Lisboa
[8] E inclusive na maior dificuldade
na acção do competente sistema de controlo público, designadamente, na acção da
Autoridade para as Condições de Trabalho (ACT).
[9] Como escreveu Yves Clot, “o
trabalho tem um braço longo” (La Fonction
Psychologique du Travail PUF- Paris, 1999).
Meu Caro Amigo: estou totalmente de acordo com todas as verdades vertidas no seu excelente e explicativo texto.
ResponderEliminarClaro está, que o PÚBLICO não o publicou, penso eu por o não querer fazer, publicando-o, mas talvez por ser longo de mais. Poderia reparti-lo por capítulos: Precariedade I, idem II; ....
Um grande abraço para quem expôs tão bem o cancro que impende sobre quem vende o suor do seu trabalho.
Obrigado, amigo José. Mais, muito mais importante que a (não) publicação no Público é o seu comentário. Um abraço.
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