quinta-feira, 19 de abril de 2018


Regresso ao tempo perdido...


“Era um sábado e chovia desde alta noite. Lembro-me bem dessa primeira chuvada de inverno, porque a chuva tem para mim o abalo da revelação e abre como auréola o halo da memória ao que nela aconteceu. Subtilmente, aliás, é à vibração inefável das horas da natureza que eu posso reconhecer melhor o que me vivi no passado.

Um sol matinal, a opressão das setas do verão, o silêncio lunar, os ventos áridos de março, os ocos nevoeiros, as massas pluviosas, os frios cristalinos são o acorde longínquo da música que me povoa, tecem a harmonia vaga de tudo que fiz e pensei. A minha vida assinala-se em breves pontos de referência.

Mas esses pontos, como os de uma constelação, abrem-se ao que os ressoa como música de esferas, vêm de longe até mim não no que os concretiza mas na névoa que os esbate como um murmúrio de nada. O passado não existe.

Assim me acontece às vezes que toda a minha vida de outrora se me revela ilegível; o que a forma não são factos, sentimentos que se analisem ou reconheçam mas os ecos alarmantes de um labirinto onde a chuva, o sol ou o vento repercutem e quase criam uma estranga vibração. São vozes que me chamam dos quatro cantos do espaço e eu não ouço senão quando a aura das horas mas lembra”.

Nota- Extracto de “Aparição”, de Vergílio Ferreira.


Amândio G. Martins

2 comentários:

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