terça-feira, 28 de agosto de 2018


Simone e a sede de  saber...


“Enquanto aguardava ser colocada numa escola de província, ia gozando Paris. Tinha acabado com quase todas as relações que me aborreciam: tias, primos, amigos de infância. Quando almoçava com os meus pais evitávamos as discussões e tínhamos poucos assuntos de conversa; ignoravam praticamente tudo da minha vida. O meu pai estava zangado por eu ainda não me ter colocado; quando os amigos lhe perguntavam por mim, respondia com desgosto: “Anda na borga lá por Paris”.

É verdade que me divertia o mais que podia; aceitava encontros e saía com qualquer um, por assim dizer. As noites passavam-se a vociferar contra a estupidez humana, a podridão da sociedade, a arte e a literatura em moda. Alguém sugeriu alugarmos a Torre Eiffel para lá escrevermos, em letras de fogo, a palavra “Merde”. Outro desejava inundar a Terra de petróleo e chegar-lhe fogo.

Eu não me metia nestas imprecações mas gostava do fumo, do tilintar dos copos, do rumor das vozes exaltadas, enquanto o silêncio descia sobre Paris. Uma noite, quando o café fechou, todo o grupo se dirigiu ao Sphinx e eu segui-o. Devido a Toulouse Lautrec e a Van Gogh, imaginava os bordéis como lugares de alta poesia; não fiquei decepcionada. A decoração, de um mau gosto ainda mais gritante do que o interior do Sacré-Coeur, a iluminação, as mulheres seminuas tornavam-no bem mais interessante do que as pinturas idiotas e as barracas de feira tão caras a Rimbaud..

Nunca me embebedava; o meu estômago não era muito forte, com pouca coisa me punha mal-disposta. Mas não era preciso o álcool para me embriagar; ia da surpresa à maravilha, do prazer à grande festa. Tudo me divertia, tudo me enriquecia. Tinha tantas coisas a aprender que uma qualquer me podia instruír.

Sartre interessava-se pela psicologia dos místicos e eu mergulhava nas obras de Catherine Emmerich, de Santa Angèle, de Foligno. Quis conhecer Marx e Engels e lancei-me a “O Capital”. Saí-me bastante mal; não via diferença entre o marxismo e as filosofias a que estava habituada e, de facto, não aprendi quase nada. Apesar disso, a teoria da mais-valia foi uma revelação para mim, tão espantosa como o cogito cartesiano, como a crítica kantiana do espaço e do tempo”.

Nota-Apontamento do livro anexo.


Amândio G. Martins

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