domingo, 14 de abril de 2019


O prazer da leitura...


Editado em Portugal em 1973, transcrevo um trecho do livro anexo, que viu  alterado o título original – “A many splendoured thing”- para “A colina da saudade”; tinha ainda algumas reminiscências de quando o li pela primeira vez e deliciei-me agora com a releitura. Nascida na China, filha de pai chinês e mãe belga e formada na Europa, onde depois ficou algum tempo, Han Suyin  voltou à pátria durante a Revolução de Mao:

“Entre a Terra e o Mar. Falar? Mas dizer o quê? Que o mar retumbe!... Hoje os povos falam, as multidões vociferam como uma voz de alto-falante. São os que por si têm o futuro, são os que, resgatados pela fome e pela miséria e experimentando essas duas grandes fomes de libertação, são hoje tão anónimos e implacáveis como o trovejante oceano ao afirmarem-se e ao afirmar o poder da sua classe para destruír a ordem antiga.

Que o mar retumbe! Porque elevarei eu uma voz fraca, desesperada eu, que me mantenho em precário equilíbrio entre o chão que se esquiva e as ondas destruidoras, recusando um e outro? O vento do mar devolve-me as minhas próprias palavras. Asiáticos como eu, pertencentes à pequena “classe superior”, são eurasiáticos intelectuais. Todos fomos, quase somos, educados entre dois mundos.

Do eurasiático racial não vale apena falar ou escrever. Constitui um preconceito mesquinho, de pouca monta, mantido nos pontos extremos do império, onde subsiste como tema de especulações malsãs e de maledicências de mulheres brancas já cansadas do jogo de bridge. Mania vexatória mas anódina. Se certos eurasiáticos de raça trazem um espinho na carne, desconfiam dos brancos e se queixam de desigualdade é porque eles macaqueiam o modo de vida dos brancos e as suas injustiças, em vez de rirem de toda essa mistificação cómica e pomposa que é a vida do branco no Oriente. Não existe problema para os eurasiáticos que aceitam o seu lado asiático.

Há alguns jóvens asiáticos que se preocupam com a forma de eurasiatismo intelectual; este, porém, nada tem a ver com a raça. Ligados sentimentalmente ao seu próprio país pelos ecos e pelo calor da infância, por reminiscências sensoriais informuladas que formam o pano de fundo dos seus sentimentos de adultos, os jovens asiáticos são mandados para as Universidades das missões, e, dali, para Cambridge ou Colúmbia, Paris ou Genebra, para aí se modernizarem e ocidentalizarem.

Ao deixarmos os belos jardins da Europa do Ocidente e da América do Norte, essa vida bem ordenada, em que a inteligência é encantada pela discussão e estimulada pela subtileza, voltamos à nossa pátria. Regressamos aos nossos mundos de fome, miséria inexprimível, corrupção flagrante e injustiça gritante, reencontramos as mãos estendidas e as chagas horrendas. Pelas necessidades prementes do Oriente deixamos as abstracções académicas do Ocidente.

Somos, no estrangeiro, estudantes favorecidos, com bolsas de estudo,envolvidos no prestígio fictício das “velhas culturas”e voltamos para os países colónias, onde somos relegados para a nossa condição.Voltamos à pátria para nos adaptarmos – e muitos de nós não conseguem – a inferior nível de vida. Tornámo-nos incapazes de suportar a falta de asseio, de tolerar os escarros. Torna-se-nos sensível o mau cheiro, reparamos nas moscas e choca-nos profundamente, habituados como estamos à higiene, o nosso campónio, que afunda as pernas no estrume das cloacas.Coisas pequenas, mas que abrem largo fosso entre nós e o nosso povo.

Surgem então as almas dúplices, com duas camadas sobrepostas. Ao fundo, as emoções profundas, os tabus e as censuras, preferências e repulsões inexplicadas e obscuras. Por cima, uma pletora de palavras especiosas, teorias cujo sentido se volatiliza em presença da miséria sem limites, ideias aceites intelectualmente, mas sentimentalmente impotentes, um comportamento racional que se esquece logo que começa a ouvir-se rugir, nas profundidades, o mar. Seres desdobrados! Somos, no nosso trabalho, réplicas com êxito dos sábios e eruditos do Ocidente. Na vida privada conservamos abrigados e em segredo amores e amizades; enterramos profundamente os nossos ódios, reservando para a criança que em nós vive uma morada segura e obscura, livre de todo o compromisso, refúgio contra o intelecto esquadrinhador que adquirimos durante as nossas estadias no Ocidente.                                     (...)

Foi na Ásia que vimos desfazer-se o mundo ocidental, esse mundo que admiramos pela sua perfeição técnica e que, ao mesmo tempo, nos irrita, sem sabermos justamente porquê. Aqui o vimos destruir-se a si próprio com as promessas que não manteve, a sua generosidade de múltiplas caras, os seus absurdos cómodos e redundantes, a sua repugnância por desistir do que alcançou, a sua parcimoniosa filantropia. Nós, filhos da Ásia, colhemos os frutos – podres ou maduros – de todo o mal realizado outrora. Quando a “ordem nova” chegou, com as suas boas intenções e as suas soberbas bandeiras, as suas palavras estimulantes e a sua unidade, a sua coerência e o seu amor da terra, trazendo uma razão de viver, ensinando a suportar a morte, iluminando os “hoje”com os “amanhãs que cantam”, tivemos de escolher”.


Amândio G. Martins

2 comentários:

  1. Dum trecho pouco posso inferir mas reconheço que este tem muita densidade de conceitos. Mais do passado, mas que se repercutiram (repetem?) no presente.Relevo aquele que, institivamente, mais me tocou: "....e que vimos desfazer-se o mundo ocidental, esse mundo que admiramos pela sua perfeição técnica e que, ao mesmo tempo, nos IRRITA SEM SABERMOS EXACTAMENTE PORQUÊ".As maiúsculas são da minha conta.

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  2. O livro tem 357 páginas; o que me permiti transcrever é uma pequena parte, mas pareceu-me dar o tom geral da obra, que a mim me parece muito boa...

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