terça-feira, 5 de novembro de 2019

SALVE 5 DE NOVEMBRO - O DIA DA LÍNGUA PORTUGUESA NO BRASIL


Portugal passou a comemorar a língua pátria em 10 de junho de 1981, em homenagem ao 4º centenário do falecimento de Luís Vaz de Camões, o imortal compositor do grande poema épico “Os Lusíadas”; já a comunidade dos países de língua portuguesa (Cabo Verde – 2009) fixou a  data comemorativa em 5 de maio, enquanto o Brasil, somente em 12/06/2016, através da Lei nº 11.310, veio consagrar 5 de novembro como o dia de reverência à língua portuguesa, lembrando o nascimento de seu maior cultor, o eminente jurista Rui Barbosa.
Embora sempre favorável a uma reforma simplificadora, em plena harmonia com setores intelectuais de Portugal, o grande Rui combateu veementemente as correntes que defendiam a transformação do idioma num dialeto brasileiro, com máxima liberdade, o que ele chamava de “surrão amplo, em que coubessem todas as escórias da preguiça e do mau gosto, desde que criadas para o agrado dos que ignoram a sua língua”.
No afã de justificar suas observações para o aprimoramento da redação do Código Civil de 1916, contestadas pelo ilustre professor Ernesto Carneiro Ribeiro, escreveu a famosa “REPLICA”, que se tornou um repositório de grande erudição linguística: era o lúcido discípulo, em debate com o respeitável mestre visando ao objetivo de atingir um nível de aperfeiçoamento do estatuto substantivo civil brasileiro.
O atual Código Civil, de 2002, adotou em grande parte, a redação do anterior, mas, em alguns setores, não ficou bem redigido (art. 1829) e criou uma alteração de mau gosto e até antieufônico ao admitir o usucapião como palavra feminina (a usucapião). Com todo o respeito a quem entenda diferente e até mesmo ao que está escrito na legislação civil portuguesa, não vejo razão plausível para aceitar o argumento de que a palavra deva ser feminina só porque em Latim teria sido, muito discutivelmente, deste gênero, ademais é de se levar em conta que, na transmudação etimológica, a manutenção do gênero do vocábulo não é obrigatória. O ilustre gramático Silveira Bueno a considera masculina, já os dicionários de Aurélio Buarque e de Antônio Houaiss a registram como de duplo gênero.
Importante salientar que, na formação latina do vocábulo, a base foi o substantivo “usu” no caso ablativo, acompanhado da forma verbal “capio”, daí o nome usucapio (“conquista pelo uso”), cujo acusativo usocapionem resultou em usucapião na língua portuguesa. Tudo indica que o feminino (a usucapião) se refira à ação processual, e não à palavra propriamente dita designadora do instituto jurídico. Não se pode, pois, confundir a ação de usucapião com direito de usucapião. Adotou-se o masculino na tese por mim defendida e aprovada sobre o usucapião, no 1º congresso do Ministério Público do Estado de Goiás realizado em setembro de 1976.

            No seu famoso discurso como paraninfo em colação de grau de bacharéis em Direito (ORAÇÃO AOS MOÇOS), Rui esbanja o seu talento oratório, numa apoteótica demonstração de cultura jurídica e linguística, em que não faltou a simplicidade do uso de certas comparações exemplificadoras e até irônicas, ao dizer, numa crítica ao funcionamento da justiça, que “os processos andam nos tribunais como o bicho preguiça no mato e penam nas mãos dos juízes como almas no purgatório”.
            Ele poderia ter dito também que precisa haver clareza nos arrazoados advocatícios, postulações do Ministério Público, despachos e decisões judiciárias, até mesmo, se preciso for, com uso de expressões repetitivas nem sempre maculadoras do estilo, para evitar dúvidas, já que, segundo Antoine de Saint- Exupéry, autor do livro “O Pequeno Príncipe”, “a linguagem é a fonte dos mal-entendidos”.
            Lembro-me de um processo criminal que tratava de um caso de sedução – um delito do passado que, mesmo nos antigos tempos, não se ajustava bem à realidade social. Ao prestar depoimento, uma jovem menor de 18 anos, disse que acreditando nas promessas de casamento, se entregou ao namorado, em relações sexuais, porque gostava dele e tinha muita confiança nele. Ao transcrever suas palavras, no termo das declarações, colocou o escrivão que, “em virtude de promessas de casamento do acusado, com ele a depoente manteve relação sexual, porque gostava e confia muito nele”.
            Intervindo como agente do Ministério Público, solicitei fosse alterado o registro para evitar ambiguidade a comprometer o sentido real do que foi dito e a bem da correção linguística, porque os verbos gostar e confiar tem regimes diferentes quanto à preposição diante de seus objetos. Então ficou assim escrito: “Manteve relações com o acusado, porque gostava dele e nele confiava muito.” Na redação anterior, poder-se-ia entender que o gostar seria da relação sexual; aliás, um bom gosto, desde que de acordo com as leis naturais, sem abusos extravagantes, e assim se torna um estimulo atenuante dos percalços conjugais: “uma isca de prazer para que haja cumprimento de dever”, na opinião do sábio filósofo cristão Huberto Rohden, de quem tive a honra de ser aluno.
            Conforme escrevi em artigos anteriores, muita modificação simplificadora precisa acontecer para facilitar o aprendizado de nossa língua tão cheia de complexidade, cujo número de falantes se estima em mais de 260 milhões. Seria bom acabar com o “ç” cedilhado; “s” com som de “z”, “ch” com som de “x” e outras coisas mais.
            Aprendi analise sintática com o saudoso professor Hermenegildo Marques Veloso, português de Figueira da Foz que, jovem ainda, veio para o Brasil. Mais tarde após minha experiência de magistério no tradicional Lyceu de Goiânia tornei-me autor de um modesto livro sobre o assunto sempre considerando que analise sintática é meio e não fim para o bom entendimento dos textos.
            Seu objetivo deve limitar-se ao mais essencial, visando, principalmente, às noções de concordância verbal e de pontuação, através de reconhecimento de sujeito da oração e das funções complementares, como sempre também me ensinaram os professores Baltazar dos Reis, Carlos de Campos e Gilberto Mendonça Teles, sendo este um grande poeta e exímio filólogo premiado com bolsa de estudo em Portugal, onde permaneceu por mais de um ano, e é, sem dúvida, a maior expressão das letras do Estado de Goiás, com várias obras publicadas, entre as quais  “A Poesia em Goiás”, “Camões e a Poesia Brasileira “ e Carlos Drumond de Andrade—Estilística de Repetição”.
            Já vi questiúncula discutível e polêmica de análise sintática prejudicar candidatos ao ingresso nos cursos superiores, nos chamados exames vestibulares, tal como aconteceu, em fevereiro de 1958, na Faculdade de Direito sediada na rua 20 de Goiânia, mais tarde integrada na Universidade Federal de Goiás.
            Como era grande o número de concorrentes, cerca de 200 para apenas 80 vagas, foi temerariamente rigorosa a banca examinadora composta pelos professores Romeu Pires de Campos Barros e Zechi Abrão, ao escolher um longo texto do escritor Raul Pompeia, cuja análise, sobretudo quanto à oração principal do período, foi bastante valorizada na atribuição de pontos.
Eis o texto:
            “Obedecendo à dolorosa imposição das circunstâncias que forçavam a um enérgico procedimento para com os príncipes do ex-Império, o governo teve necessidade de isolar o paço da cidade, vedando qualquer comunicação do interior com a vida da capital”.
             A oração principal do extenso período poderia ser: “O governo teve necessidade de isolar o paço da cidade”. Em face da existência de uma locução verbal, o núcleo do predicado poderia ser “teve necessidade de isolar”, e “paço da cidade” constituiria o objeto direto, tendo “paço” como núcleo e “da cidade”, como adjunto adnominal. Mas também, a principal poderia ser apenas “o governo teve necessidade” e, neste caso, “teve” funcionaria como predicado verbal, e “necessidade” como objeto direto. A oração seguinte “de isolar o paço da cidade” ficaria analisada como uma subordinada substantiva completivo - nominal reduzida de infinito, ou seja, uma oração integrante complementar da palavra “necessidade”, equivalendo a “que fosse isolado o paço da cidade “ou a um simples substantivo, o isolamento.
            O desdobramento do infinitivo “isolar” em outra oração seria muito mais lógico, até porque a análise sintática é também chamada de análise lógica, e com este entendimento, a palavra “necessidade”, ao invés de ficar sem análise integrando a expressão verbal, seria analisada como o legitimo objeto direto do verbo.
            Infelizmente, não foi aceita como válida está correta opção e um grande número de examinandos foi prejudicado, inclusive eu, que, na época, ainda não era um professor de língua portuguesa; mas, modéstia à parte, meu conhecimento sobre análise sintática não era inferior à dos examinadores; teria sido capaz de enfrentá-los num debate, mas revisão não era permitida e a perda de pontos acabou prejudicando minha aprovação. Fiquei muito traumatizado. Outro exame vestibular só aconteceu no ano seguinte (1959) quando obtive o segundo lugar na classificação dos aprovados para o curso jurídico.
            Eis aqui minha sincera homenagem à Língua Portuguesa, em mais uma de suas datas comemorativas. Que seja sempre estudada, querida por todos nós, seu conhecimento exigido em qualquer concurso, mas com avaliação dentro dos limites do bom-senso, sem rigores exagerados, porque ela é muito difícil e ninguém a domina plenamente.
Seja ela sempre um elo de união entre nossa gente e a lusitana no encontro de almas nacionais na literatura, tal como demonstrou o inesquecível cantor português Roberto Leal (nome artístico de Antônio Joaquim Fernandes), que, recentemente partiu para o mundo espiritual, nos deixando a indelével marca da saudade—palavra exclusiva de nossa língua —em seus maravilhosos cânticos no fado, no vira, na chula e no samba, onde aparecem os belos versinhos de um refrão do fado “Brasil e Portugal”, de sua autoria juntamente com Silvio Brito.
O que amor uniu
não tem final;
Sou o Brasil,
              és Portugal.

2 comentários:

  1. Quase perdi o fôlego, mas li até ao fim. Este notável texto do professor Vivaldo Araújo trouxe-me à memória o enorme actor Paulo Gracindo que, no papel de coronel Odorico, numa novela de que não recordo o nome, cultivava o gosto pelas frases "grandiloquentes", rematando sempre com um abusivo "Rui Barbosa". Isto fez-me procurar saber quem era essa figura multifacetada, que até chegou a estar exilado em Portugal, em consequência da sua participação na Revolta da Armada, em 1893. Viveu ainda um quarto de século depois disto, pois faleceu no Rio de Janeiro em 1923.

    ResponderEliminar
  2. O texto é dificilmente "digerível", mas seguramente que em enriqueceu.

    ResponderEliminar

Caro(a) leitor(a), o seu comentário é sempre muito bem-vindo, desde que o faça sem recorrer a insultos e/ou a ameaças. Não diga aos outros o que não gostaria que lhe dissessem. Faça comentários construtivos e merecedores de publicação. E não se esconda atrás do anonimato. Obrigado.

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.