Sei que você nunca partilhou dos ideais democráticos. Pela educação que recebeu, pela propaganda que ingeriu, nunca sentiu a pulsão dos ideais de liberdade e, menos ainda, dos da igualdade. Apesar disso, porque o ordenamento democrático lho permite, ninguém o incomodará por isso, podendo continuar a pensar-se anti-sistema. Coisa que o regime que lhe dá saudades não permitia. Pode votar em partidos que, sub-repticiamente, acusam a democracia de ser a razão de todos os males que afligem o país, que insinuam que “dantes” é que se vivia bem. É claro que não vêm lembrar-nos da miséria que grassava, do obscurantismo a que nos submeteram, do monolitismo intelectual a que nos obrigaram. Não vêm lembrar-nos da iniquidade que, “legalmente”, protegia os poderosos e oprimia os fracos.
Está tudo perfeito? Não, mas é bom podermos afirmá-lo sem medos. Afinal, se “dantes” tudo era “perfeito”, por que é que o sistema se fechava, nos obrigavam a ir ao café de mordaça na boca? Tinham medo de quê? Obviamente de perder privilégios que só se davam aos “amigos”, de perder os “doces” poderes que um autoritarismo feroz lhes permitia: explorar os pobres sem o perigo de que alguém os denunciasse, meter os insubmissos nas cadeias, concentrar nas mãos do mesmo todos os poderes, censurar os jornais com toda a “naturalidade”.
Não duvido da sua generosidade e grandeza de carácter. Não se deixe enganar. Há quem queira que o ovo da serpente termine a gestação.
Público - 24.04.2024
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