quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

O Desconcerto do Mundo


Quer nos meus tempos de estudante, quer nos meus tempos de professor, nunca dei qualquer relevância a um pequeno poema de Camões que, para além de achar engraçado, considerava que não tinha qualquer expressão na realidade da época. Acontece que hoje, ao lê-lo por mero acaso, constatei, com surpresa, que reproduz fielmente a nossa realidade actual. Como o poema é o mesmo, só pode ter sucedido uma coisa: a sociedade portuguesa mudou muito e para pior. O poema denomina-se "Desconcerto do Mundo" e reza assim: «Os bons vi sempre passar/ no Mundo grandes tormentos;/ e pera mais me espantar,/ os maus vi sempre nadar/ em mar de contentamentos./ Cuidando alcançar assim/ o bem tão mal ordenado,/ fui mau, mas fui castigado:/ assim que, só pera mim,/ anda o Mundo concertado.»

Não tenho qualquer dúvida de que as leis são hoje criadas, interpretadas e aplicadas com o único objectivo de beneficiar uns (a clientela amiga) e prejudicar outros (os que não gostam de vir comer à mão). É como se vivêssemos numa cidade onde toda a gente é obrigada a circular de automóvel mas onde é proibido estacionar em todo o lado. Acontece que, enquanto uns estacionam onde querem e lhes apetece, sem que nada lhes suceda, outros são sistematicamente multados. E se o infractor alegar, em sua defesa, que fez apenas o que viu fazer, o meritíssimo juiz ou a autoridade pública encarregar-se-á de lhe lembrar que não aproveita ao infractor o facto de outros também terem infringido a lei. Concluindo: também em Portugal, o mundo só anda concertado para alguns.
 
Santana-Maia Leonardo

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