Quer nos meus tempos de
estudante, quer nos meus tempos de professor, nunca dei qualquer relevância a
um pequeno poema de Camões que, para além de achar engraçado, considerava que
não tinha qualquer expressão na realidade da época. Acontece que hoje, ao lê-lo
por mero acaso, constatei, com surpresa, que reproduz fielmente a nossa
realidade actual. Como o poema é o mesmo, só pode ter sucedido uma coisa: a
sociedade portuguesa mudou muito e para pior. O poema denomina-se
"Desconcerto do Mundo" e reza assim: «Os bons vi sempre passar/ no
Mundo grandes tormentos;/ e pera mais me espantar,/ os maus vi sempre nadar/ em
mar de contentamentos./ Cuidando alcançar assim/ o bem tão mal ordenado,/ fui
mau, mas fui castigado:/ assim que, só pera mim,/ anda o Mundo concertado.»
Não tenho qualquer dúvida de que
as leis são hoje criadas, interpretadas e aplicadas com o único objectivo de
beneficiar uns (a clientela amiga) e prejudicar outros (os que não gostam de
vir comer à mão). É como se vivêssemos numa cidade onde toda a gente é obrigada
a circular de automóvel mas onde é proibido estacionar em todo o lado. Acontece
que, enquanto uns estacionam onde querem e lhes apetece, sem que nada lhes
suceda, outros são sistematicamente multados. E se o infractor alegar, em sua
defesa, que fez apenas o que viu fazer, o meritíssimo juiz ou a autoridade
pública encarregar-se-á de lhe lembrar que não aproveita ao infractor o facto
de outros também terem infringido a lei. Concluindo: também em Portugal, o
mundo só anda concertado para alguns.
Santana-Maia Leonardo
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