sexta-feira, 14 de julho de 2017

Fardas à mesa

Raras são as vezes em que os militares são chamados a sentarem-se à mesa do Poder, como sucede por estes dias. Sabemos da sua importância e também conhecemos o sabor que eles sentem nessas ocasiões. Eles gostam de ser apaparicados. São momentos que lhes aumentam a estima, o brilho e o peso dos galões. Já andam um pouco enfadados de fazer jogos de cartas na Messe, entre uma paciência vezes repetida, e uma partida de bridge, apoiados num William Lawsons, com ou sem pedra de gelo. Também tive a minha vez de fazer luzir um galão aos ombros por cá e por África. Sei do que falo. “Quem são eles quem são eles. Onde é que eles estão”? Exclamaria o palmelão e ex-leão. Façamos um traço da sua condição. Os militares apreciam estas chamadas à formatura governamental, e a pronunciarem-se sobre o que os incomoda e se arrasta por dentro dos quartéis, em surdina por vezes. São matreiros só quanto baste, acreditem. Mas são sobretudo feitos de espinha dorsal, quase todos. Há excepções, claro. Aqueles para quem a farda serve apenas para camuflar outros gestos e atitudes, numa parada aonde desfilarão nus, mais cedo que tarde. Falham no entanto como todos nós. Com maior gravidade ou piores efeitos, com certeza, já que a área em que se movem é fundamental para o equilíbrio e estabilidade do país. Mas erram. São homens como outros, só que quando fardados parecem um corpo com mais armas. Armas que no entanto lhes escapam, sabe-se lá por onde e como. Perguntas que fazem parte do manual de estratégia de guerra no terreno e de sobrevivência. Quando, como, por onde e para onde. Estas, as interrogações que se formulam na hora de decidir uma tomada de posição, sem equívocos e sem hesitações, quando se pretende sair de um lugar para ocupar outro mais objectivo. São no entanto, íntegros. Homens que uma vez dada a palavra, neles se pode confiar. Assim deve e terá de ser, uma vez que são os elementos de defesa e de segurança, dentro da normalidade e da Lei, de um povo e de uma nação. Neles está depositada a confiança da Lealdade. Porém, eles sem actividade num qualquer teatro de operações (expressão que lhes é cara), sério e contínuo, tornam-se invisíveis, apagados, e não gostam. Ocupam com paciência de missionário, o convento que virou quartel, e velhas instalações conservadas, que deram em pousadas. Sentem-se bem no rebuliço ordenado, e por entre o guarda-mato e o ponto de mira. Por isso os governantes e políticos em geral, são forçados a estabelecerem com eles as melhores relações, proximidades, e boas práticas de tratamento. Usarem de pinças e de luvas. Os militares usam-nas, até para pegarem em espadas fora da caserna. À mesa, porém, sabem usar de etiqueta. O militar ainda recorda o fascínio que provocava nas mulheres, que se embeiçavam pelos vincos e pelo talhe da vestimenta. Kubrick sabia-o e projectou-os de algum modo, em Barry Lyndon. Cenário idílico e bélico sempre. A boçalidade que se lhes cola, ficou no retrato antigo, do regime velho e com tom colonial. A Democracia fardou-os com valores e sentidos mais amplos. Tornou-os ainda mais cavalheiros, a par de camaradas. Hoje eles estão à mesa com os que comandam os destinos do país civil, a trocarem argumentos e a porem as cartas todas na mesa. Sabemos que eles escrutinam a limpeza das ordens emanadas para serem postas em marcha. Podem adiar mas não são de rodeios. E foi no adiar que cometeram graves erros, em desconcerto na fiscalização e segurança dos paióis. Hoje eles têm muito vagar, para traçar estratégias e escalas de serviço para manterem os seus quartéis a salvo de qualquer assalto, ridículo sobretudo. Capaz de os envergonhar, como reconheceram, e até os levaram à demissão e exoneração dos cargos e das fardas. Dispensam qualquer protagonismo mas querem atenção. Não querem dar ao gatilho mas antes emitir opinião. Os políticos, também terão que aprender a comportarem-se na formatura com a mesma disciplina que aos militares é exigida. Entre estes entretainer`s parlamentares a coisa é mais difícil, pois à maior parte falta-lhes a coluna vertebral, firme, que os militares sentem e dela fazem questão, enquanto corpo e corporação de boas práticas e costumes, que assentam na disciplina, na ética e no código de honra. Agora, passados estes dias de verão quente e trágico, e embrulhados numa crise, não os mandem regressar aos quartéis, sem lhes manifestarem o respeito e o reconhecimento da sua importância. Eles procuram soluções e não reclusões e silêncio, e muito menos que tudo fique a marcar passo ou em águas de bacalhau podre.

*-(publicado no DN.madªem 19/08/2017)


1 comentário:

  1. Já confessei o meu lado pouco castrense. O seu texto, caro Joaquim, possui, como sempre, imensa cultura, o seu talento de escrita, acutilância e... a sua admiração pelas "virtudes" da corporação militar. Não o acompanho nessa admiração mas admiro a forma brilhante como a defende.

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