segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Fernão Mendes Pinto-O homem e o mito

É tão rica a personalidade deste homem prodigioso que dela se geraram dois mitos opostos – o do mentiroso sem escrúpulos e o do herói de um poema épico.
Marinheiro, diplomata, escravo, mercador e missionário, tudo isto Mendes Pinto foi sendo pela vida fora; e o encanto e sedução de uma tal vida foram relevados depois de 1640, quando a nação resurge e com ela se revigoram os nomes de Camões, Mendes Pinto e outras figuras grandes da época, mesmo que antagónicas entre si.

De uma família muito pobre de Montemor-o-Velho, foi levado por um tio, com a idade de doze anos, para a casa de uma fidalga de Lisboa, uma senhora com quem o pequeno poderia encontrar o princípio de uma carreira. Sucedeu que, pouco tempo depois, terá presenciado alguma coisa de tal forma escabrosa, que dela só mais tarde revelou “ter visto a morte diante dos olhos”; assustado, fugiu daquela casa e só parou no cais da cidade, refugiando-se numa caravela, que na viagem foi atacada por piratas, começando aí uma vida de aventura que o levou a situações em que foi “treze vezes cativo e dezassete vendido”.

Foi missionário jesuíta e companheiro, no Japão, do espanhol S. Francisco Xavier, e durante algum tempo os jesuítas serviram-se dos seus muitos conhecimentos e fortuna adquirida como mercador para se expandirem, embora mais tarde, quando abandonou a Companhia de Jesus para regressar à pátria e formar familia, tudo tivessem feito para o desacreditar. Passou os últimos anos esquecido na aldeia do Pragal, na margem Sul, onde escreveu o livro e lhe nasceram os filhos.

O que se sabe de Fernão Mendes Pinto, do homem e da sua vida, não é pouco, embora muitas particularidades se mantenham no mais obscuro mistério; e é nos momentos maiores da sua aventura pelas rotas do Oriente que os  mistérios e as controvérsias se adensam, embora o navegador nos tenha legado a notável autobiografia “Peregrinação”, pela primeira vez editado em 1614, trinta anos depois da sua morte.

Muita coisa que diz nesta obra se pôs em dúvida, geralmente orientada no sentido de pôr em causa a sua idoneidade, tendo os seus detractores criado o ditoche “Fernão, mentes? Minto”. A obra começa a ser escrita muitos anos depois dos factos a que diz respeito, depois de ter regressado da sua vida aventurosa, e não é natural que nas andanças em que se viu constantemente metido tivesse oportunidade de arquivar notas e mais tarde socorrer-se delas; e se as tivesse tomado, decerto as teria perdido, ou delas sido despojado, tantas foram as vezes que naufragou, esteve preso e reduzido às condições mais básicas da existência.

O simples facto de ter escrito “Peregrinação” depois desta ter terminado, e de ter ela durado cerca de vinte anos da vida do autor, e de estar ela repleta dos mais diversos acontecimentos vividos em países distantes, tudo isto pode ter contribuído para que na redacção se verificassem algumas ambiguidades, mas a verdade da sua existência chega largamente para ainda hoje poder ser considerado um dos mais extraordinários livros de todos os tempos. E estudiosos das mais diversas latitudes concluíram que o Homem se sobrepõe largamentre ao mito

Amândio G. Martins



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