É terrível a facilidade com que entre duas garfadas do almoço vemos cenas de mais um ataque terrorista, da catástrofe natural da semana, do grande acidente do dia, refugiados, abandonados mortos, estropiados. E vai mais um bocado de bife, uma garfada de batatas. É terrível mas também é como tem de ser, senão enlouqueceríamos em menos de nada, se todas as desgraças fossem como nossas. É esta natural habituação e distanciação que me leva a ver com desagrado algum abuso de imagens-choque. O choque de hoje, é a violência habitual de amanhã, o comportamento normal de dias vindouros. Não se trata de esconder a violência, até porque mostrar alguma é útil. Individualmente, porque a violência faz parte do mundo e é bom que não nos esqueçamos disso. Coletivamente, para despertar para grandes dificuldades, qual teria sido o destino de Timor-Leste sem a divulgação das imagens do massacre de Santa Cruz?
Entre ataques e desgraças uma houve que me conseguiu mesmo comover recentemente, o incêndio na Torre Grenfell, em Londres. Porquê? Não sei ao certo... Porque vi A Torre do Inferno quando era miúdo? Pela semelhança com as Torres Gémeas em Nova Iorque? Por se ver que vítimas e desalojados eram (todos?) pobres ou imigrantes, ou ambos, e se adivinhar já histórias de anos de desleixo e desprezo? Dias depois, no fim de semana passado, a 17 de junho, começam os incêndios de Pedrogão Grande, e arredores, que levaram, para já, à morte de 64 pessoas. Com este fiquei furioso. Com os acontecimentos, e com a catadupa informações, opiniões e atitudes desta semana passada. Nem sei por onde começar, nem onde acabar, siga então em boa desordem...
Independentemente de se ter de averiguar o que correu mal nos procedimentos existentes, e eventuais responsabilidades pessoais, convém não esquecer que o mundo é, senão aleatório, pelo menos caótico. Qualquer pequena diferença, completamente imprevisível e incontrolável pode alterar dramaticamente o futuro. Ou seja, já houve, e possivelmente haverá nos próximos dias, dias quentes e secos, com essencialmente o mesmo dispositivo, as mesmas pessoas, as mesmas orientações, idênticas decisões, e vá-se lá saber como, nada de grave acontece. Não que não se possa aprender, melhorar e responsabilizar - pode e deve! - mas não se pode garantir que desta ou daquela forma nunca virá a acontecer.
Horas depois de se saber das imensas mortes. Incêndios ainda muito fora de controle, muitas aldeias, vilas, bombeiros em perigo. A Ministra da Administração Interna dá uma conferência de imprensa no local. É nesse momento que a algum jornalista ocorre perguntar se ela não se vai demitir. Ainda se fosse um jornalista isolado mas não, é um representante do sentimento de muitos. Pergunto eu, demitir-se porquê? É suspeita de algo, há risco de encobrir alguma maldade sua? Há indícios? Se houvesse... mas claro que não há, o que há é apenas a suspeita generalizada. "Eles" são todos corruptos, e desde logo culpados, a prova é simples: tem um cargo público. Assim sendo, deviam demitir-se todos os possíveis culpados de alguma incompetência ou incúria. Ministra da Administração Interna, sim, mas também o Primeiro-Ministro, o Ministro da Agricultura, uns quantos secretários de estado, os presidentes de câmara de Pedrogão Grande e arredores, presidentes e comandantes de bombeiros da região, toda a hierarquia da proteção civil, diretores de hospitais, delegados de saúde... e mais, a eito! Todos terão, talvez, responsabilidades, demitam-se. E... quem combate o incêndio? Quem trata de feridos, desalojados e mortos?
Penso que foi este espírito que guiou a intervenção inicial do Presidente da República, pecando talvez de algum excesso de espírito positivo, tinha no entanto razão. Com o incêndio em grande e ainda de elevadíssimo risco, a prioridade é o combate, não procurar culpas e culpados. Espero que o Presidente, menos envolvido nas lutas políticas diárias não se esqueça e faça o possível que agora, e nos meses vindouros, o apuramento de deficiências e eventuais responsabilidades seja feito. Evidentemente, prioridade ao combate e à ajuda não significa que aqueles que têm como missão investigar não o façam logo, apenas que se deixe o combate prosseguir tendo os intervenientes concentrados nessa tarefa, e não em defenderem-se ou a tentar ignorar ataques vindos de todos os lados. Por exemplo...
Logo nas primeiras horas se procurou saber se houve falhas nas comunicações (SIRESP). As primeiras declarações foram absurdas. Que os sistema não falhou, mas que houve algumas zonas sem cobertura. Ou seja, em Miranda do Douro, ou em Mértola, funcionava bem, mas em algumas zonas de Pedrogão Grande falhou. Onde ele estava a ser necessário, falhou. Portanto, numa palavra: falhou. A resposta boa era explicar onde e porquê é que falhou, e apontar caminhos para melhorar. A resposta real é defensiva e no essencial inútil. Claro que a resposta boa exige tempo, que não é possível ter a meio de um incêndio, e no meio de vozerio a procurar culpados. Uma ideia solta: será possível ter apoio da força aérea com retransmissores em avião, quando haja falha de comunicações com base em antenas terrestres?
Disse-se que talvez não se tenha dado a devida atenção aos avisos do IPMA (Instituto Português do Mar e Atmosfera). Se os responsáveis pela prevenção e previsão de meios não deram atenção, fizeram mal. Mas concedo um facto: como cidadão que por necessidade prestou muitas vezes atenção a esses avisos, a sensação que tenho é de os haver em excesso. Os avisos amarelos são em geral pouco significativos. Está um bocado quente, ou um vento mais forte que o normal mas, quem tenha de ir para o exterior, tem de antecipar sempre a possibilidade de o dia ser pior que o previsto. Tanto aviso, não é algo paternalista? Depois quando o aviso é a sério, pode demorar-se a prestar atenção. E, já agora, é mesmo necessário que governo sim, governo não, mudem a organização de tudo e mais alguma coisa, neste caso fundindo dois institutos - o de meteorologia e o do mar - neste? Será que melhora assim tanto?
Falando em avisos. Quantas vezes participou em ações de sensibilização sobre proteção? Que me lembre da fase inicial da criação da proteção civil, pretendia-se ter uma forma de envolver toda a sociedade civil na sua própria proteção. Pouco tempo depois, ao que se chegou foi a mais um corpo institucional, com farda, bóina negra e distintivos. E dinheiros para gerir, claro está. Em vez de uma proteção civil, ficámos com a Proteção Civil. Que faz um trabalho útil, nada de confusões, mas que me parece que se esqueceu das raízes, de envolver a sociedade civil. Depois do incêndio veio dizer que sair de casa, fugir pelas estradas, é uma má ideia. Pergunto eu, as pessoas que fogem, são estúpidas, ou nunca foram de tal informadas? Algumas serão estúpidas... Mas penso que falta mesmo muito o envolvimento da população, a prevenção e responsabilização individual; ensinar o que fazer, conforme os locais, em caso de tremor de terra, cheia, incêndio, fuga de gás, e muito muito mais. Não basta ter umas páginas no sítio da Proteção Civil, ainda por cima pelo menos uma das ligações para as "Medidas de Autoproteção" não funciona; é preciso ir ter com a população, preparar.
Penso que depois de 2007 ou 2008, quando houve um grande número de incêndios depois da fase "charlie" (não sei se então já se chamava assim) se aprendeu a estender por mais uns dias a fase em que se tem o dispositivo de combate no seu máximo. Não seria de melhorar o plano para possibilitar que esta fase comece não a 1 de julho, mas quando se prevejam determinadas condições de risco de incêndio, mesmo que isso seja em junho ou até em maio, que o tivemos bem quente este ano. Depois destes incêndios antecipou-se, com alarido de multas contra balões de S. João. Trancas à porta depois de casa roubada... E a natureza e o destino até avisaram. Um par de semanas antes desapareceram dois jovens na Costa Verde, Espinho. Seguiram-se 10 dias de buscas, com dezenas de operacionais, Marinha, Força Aérea, lanchas, carros, motos-quatro, o diabo a sete! Não sairia mais barato ter começado a vigilância de época balnear antes? E a fase "charlie" antes? E nem estou a contar com as vidas que se perderam.
É importante não esquecer essa perdas de vidas, e as perdas em vidas que não se perderam mas ficam para sempre afetadas. É importante que tudo isto seja noticiado e mostrado. E é importante saber fazê-lo. Houve mortes e muitas, não há que o esconder. Que me lembre vi imagens de três corpos ao longa das poucas reportagens que segui. Um numa perspetiva aérea ao longo da estrada N236, coberto, numa berma. Se está lá, está lá, não tem que esconder, como parte de todo um cenário de devastação. Muito bem. Outro, uma dezena de metros atrás de um repórter, num enquadramento que parece feito com esse objetivo. Compreendo que já possa ser mais discutível, mas por mim não está mal. Um terceiro, com a repórter praticamente em cima dele, de intenções não sei, que não lhe estou dentro da cabeça, mas parece sensacionalismo descarado, e esquecimento que ali no chão está alguém que foi talvez pai ou mãe de alguém, de certeza foi filha ou filho de alguém. Mostrar o desastre, sim, chafurdar na dor dos outros, não obrigado.
Os responsáveis políticos dão o habitual mau espetáculo, culminando com o Parlamento a aprovar na generalidade e de urgência legislação de reforma florestal. O estudo da reforma foi prometido a meio dos incêndios de 2016, andou um ano devagar, devagarinho, para de súbito, de novo a meio de incêndios, se aprovar à pressa. Do mal o menos, irá avançar alguma coisa. Mas desde já cheira a que daqui a uma dezena de anos vamos andar a chorar outra desgraça, a lembrar como anos atrás tudo foi feito à pressa e mal... que reforma, já era para ter sido feita depois dos grandes incêndio de 2003. Do mais que que será necessário, que reformar a floresta não é tudo, nem se fala?
Mas a responsabilidade não é só "deles". É sua! É minha! Menor certamente, que eu não tenho funções ligadas com nada disto, mas como cidadão, tenho-as. Muito deste longo texto - se alguém ainda está a ler, obrigado pela paciência! - podia ter sido escrito em partes noutras ocasiões, antes dos incêndios. Claro que os meus avisos não seriam determinantes, mas um rio é feito de mil minúsculas gotas, e eu não meti lá a minha gota de opinião. Eu, o meu caro leitor, os jornalistas que hoje criticam a falta de ação de políticos, digam-me lá, na campanha eleitoral, quantas perguntas fizeram sobre isto? Quanto tempo foi dedicado a incêndios, floresta, agricultura? Ou foi só PIB, mais dívida, bancos e mais bancos? Quando se fala de outro assunto, e pouco se fala de outro assunto, trata-se pela rama, se se gasta mais mil milhões ou menos. Havendo dinheiro, está resolvido. Você, diga-me, quando foi votar, preocupou-se com isto? Eu, também não muito, votei num partido com preocupação ecológica e de sustentabilidade mas não me lembro das suas propostas quanto a incêndios. E se o assunto não interessa aos eleitores, naturalmente também não interessa ao eleitos, estamos surpreendidos porquê?
Finalmente, se eu estivesse "lá", neste ou naquele papel mais diretamente envolvido, também erraria, não espero perfeição de ninguém. Gostaria isso sim, que houvesse um espírito mais positivo e franco de procura de soluções, não quase só procura de culpados.
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