quinta-feira, 2 de novembro de 2017

Crónicas deliciosas III

Continuando a respigar no livro de José Eduardo Agualusa, diz este escritor de língua portuguesa na crónica “O segredo de Passo Fundo”:

Muitos editores portugueses continuam a lançar livros como se fossem artigos funerários. Fazem-no com a mesma  discrição, o mesmo desgosto, o mesmo falso pudor com que um cangalheiro divulga os seus serviços. Não admira que vendam poucos livros. Admirável é que consigam vender alguns.

A Feira do Livro de Lisboa, o maior acontecimento do género em Portugal, cumpre-se, a cada ano, como uma fatalidade. Levantam-se no Parque Eduardo VII aqueles casebres tristes – tão feios, meu Deus, tão desamparados! – enchem-se de livros, muitos livros, e os portugueses vão, em multidão melancólica, poupar uns tostões.

Há encontros de escritores com os seus leitores? Diz-se que sim, murmura-se que tais coisas por vezes acontecem, mas acho que nunca ninguém viu nenhum. Aproveita-se a ocasião para realizar eventos paralelos ligados à produção literária, tradução, direitos de autor, artes gráficas? Não. A maioria dos editores estão interessados apenas em vender livros. Poucos se preocupam com o essencial: formar leitores.

Vêm estas lamentações a propósito de um encontro de literatura que decorreu recentemente numa pequena cidade do Sul do Brasil, as jornadas de literatura de Passo Fundo, que já vai na sua oitava edição. Durante uma semana a iniciativa juntou debaixo de uma enorme tenda de circo cerca de quatro mil pessoas! Muitas destas pessoas vieram de longe e pagaram para ouvir escritores de diferentes países discutirem a censura, literaturas marginais ou os temas proibidos nos livros para crianças.

No encontro de Passo Fundo, além das mesas redondas com escritores e dos espectáculos de música, poesia e teatro, todos celebrando a nossa língua portuguesa, decorreram ainda, este ano, mais de duas dezenas de cursos livres sobre vários temas. Finalmente, a Prefeitura Municipal de Passo Fundo instituíu um prémio literário, aberto a todos os escritores do espaço lusófono.

O facto de uma pequena cidade ser capaz de organizar, de dois em dois anos, uma iniciativa com tamanha envergadura, ignorando inclusivé o apoio das grandes instituições, é a melhor resposta para todos quantos duvidam do futuro da literatura em língua portuguesa.


Amândio G. Martins




Sem comentários:

Enviar um comentário

Caro(a) leitor(a), o seu comentário é sempre muito bem-vindo, desde que o faça sem recorrer a insultos e/ou a ameaças. Não diga aos outros o que não gostaria que lhe dissessem. Faça comentários construtivos e merecedores de publicação. E não se esconda atrás do anonimato. Obrigado.

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.