O trabalho dá saúde (e vice-versa)
João Fraga de Oliveira
Recentemente,
por todo o país, muitos utentes do Serviço Nacional de Saúde (SNS) viram
adiadas consultas, tratamentos e até cirurgias em decurso de greves dos
médicos, dos enfermeiros e, nalguns casos, de outros profissionais de saúde do
SNS.
“O
trabalho tem um braço longo”. É uma metáfora que, a propósito de outros
domínios já aqui invoquei (ver, por exemplo, o artigo: Escola, professores, pais – o longo braço do trabalho – Gazeta da
Beira de 20/10/2016) para acentuar a indissociável ligação entre condições de
trabalho e condições de vida das pessoas.
Mas,
para além dessa ligação confinada à relação de trabalho, essa metáfora serve
também para salientar a projecção das condições de trabalho na qualidade do
resultado desse trabalho (ou seja, do produto ou serviço que esse trabalho visa)
e, daí, na sociedade em geral.
Tal
relação salta aos olhos em qualquer profissão, seja ela qual for. Por exemplo, numa
profissão mais elementar (o que não quer dizer menos digna ou importante), na
de trolha. Qual é a qualidade (e a produtividade) do trabalho de um trolha a
revestir a parede exterior de um edifício em construção, trabalhando ele em
cima de um andaime a 30 metros de altura, sem a necessária proteccção
(guarda-corpos) contra quedas em altura? Nestas circunstâncias, em que é que o
trabalhador pensa: em trabalhar bem, preocupado com a qualidade do
revestimento, ou em agarrar-se para não cair? Para onde é que vai a qualidade
do revestimento da parede?
Neste exemplo, o
que determina a falta de qualidade e produtividade do produto que se pretende
obter com esse trabalho é algo muito material e visível: as condições de segurança
dos equipamentos utilizados pelo trabalhador.
Mas o que também
acontece frequentemente é tal ser determinado por algo menos perceptível (e por
isso mesmo mais potencialmente perigoso): a falta de condições de saúde (física
ou mental) do próprio trabalhador envolvido nesse trabalho.
Ora,
esta íntima relação entre condições de trabalho e qualidade do produto ou
serviço que esse trabalho visa suscita ainda maior preocupação quando o “produto”
não é o revestimento da parede exterior de um prédio mas a saúde, a saúde das
pessoas.
Tomemos como
exemplo a recente greve dos médicos do SNS, em 10 e 11 de Maio.
As razões
apresentadas pelos representantes dos médicos (respectivos sindicatos e ordem
profissional) foram – recorda-se – a não satisfação por parte do Governo de
reivindicações que, para além de algumas de cariz estritamente remuneratório, se
relacionavam com: limitação do trabalho suplementar a 150 horas anuais (em vez das
200 horas anuais atuais), estabelecimento de um limite de 12 horas semanais de
trabalho em serviço de urgência (contra as 24 horas actuais) e redução da lista
de utentes por médico de família (de 1900 para 1500).
Ou
seja, essencialmente, têm a ver, com o que os médicos consideram ser sobreintensificação
do trabalho.
Ora,
algo a relevar é que os representantes dos médicos deram especial destaque não
apenas às consequências dessa sobreintensificação do trabalho na sua própria
saúde (cansaço, esgotamento físico ou mental, etc.) mas, também, ao risco de,
assim, não poderem garantir a qualidade e segurança no objecto e objectivo do
seu trabalho: a saúde dos outros, a saúde dos utentes que procuram o SNS.
E
vem outra vez aqui a propósito o provérbio popular “o trabalho dá saúde”. Mas
para alertar que convém não levar muito à letra esse provérbio.
Sim,
há uma íntima relação entre trabalho e saúde, mas o trabalho pode ou não fazer jus a esse provérbio. Depende das
condições em que é realizado.
Ora,
no caso dos profissionais de saúde (e não só), para além do quanto o seu
trabalho, pelas condições (ou falta delas) em que é realizado, poder ou não
“dar-lhes saúde” a eles próprios (e que saúde pode dar a quem o faz um trabalho
sobreintensificado em ritmo e duração, com sobrecarga física e ou mental?), está
em causa o quanto esse trabalho pode ou não garantir o resultado que visa,
concretamente, “dar saúde” (também) aos utentes do SNS cuja saúde é desse
trabalho dos médicos objecto e objectivo.
E
neste aspecto da sobreintensificação do trabalho (qualquer trabalho) tem aqui cabimento
reflectir um pressuposto muito comum na análise do trabalho. O de que fazer-se
qualquer coisa a um ritmo mais rápido, acelerar-se, é muito simplesmente
fazer-se a mesma coisa mais depressa.
Ora,
na realidade, tal é um equívoco que, em certas circunstâncias, se pode tornar
perigoso.
É
que, quando se acelera (e, muito concretamente, quando se sobreintensifica o
ritmo de trabalho), em regra, “queimam-se” etapas, atabalhoa-se, põe-se de lado
a análise e reflexão prévia a uma decisão / acção eficiente e eficaz. Isto é, altera-se
o processo e, por isso, (já) não se faz exactamente a mesma coisa, faz-se outra
coisa. Em regra, porque “depressa e bem há pouco quem”, faz-se já outra
coisa com menos qualidade, segurança, eficácia e eficiência.
Se
isso vale seja para que trabalho for, muito mais vale quando se “acelera” num
trabalho em que está em causa a saúde (se não a vida) dos outros. Como é caso
do trabalho dos médicos (ainda que não só, pois muitas outras profissões há em
que, pela natureza dos valores em causa, esta questão se torna tão ou mais
pertinente).
É
neste tipo de conflitos laborais em que está em causa o Serviço Público, porque
mais humana e socialmente relevantes são as consequências das condições em que
o trabalho é realizado, que mais pertinente ainda se torna a tal metáfora do
“longo braço do trabalho”.
Isto
na medida em que essas consequências não se projectam apenas no próprio
trabalhador e no seu estrito contexto social (por exemplo, na sua saúde, na sua
vida pessoal, na sua família) mas, também, dada a natureza pública do serviço a
prestar e os valores em causa, na qualidade e segurança dos objectivos que esse
trabalho visa, ou seja, mais “alongadamente”, na própria sociedade.
Então,
para além de, objectivamente, estarem em causa, para as pessoas (inclusive como
cidadãos), um cerceamento de direitos e os riscos para valores humanos e
sociais importantíssimos (por exemplo, a sua saúde), pode-lhes restar,
subjectivamente, a incerteza preocupante se, futuramente, lhes será garantida
pelos respectivo Serviço Público uma resposta atempada, segura e de qualidade quanto
à garantia da concretização desses valores humanos e sociais, designadamente, a
saúde.
Em
resumo, extrapolando para todos os Serviços Públicos este específico exemplo da
greve dos médicos do SNS, para além do desiderato político e profissional da
resolução a contento do estrito conflito laboral em causa, é imprescindível
reflectir o que dele restou ou pode restar para a sociedade em geral.
É
que também não podem ser os cidadãos em geral (como, neste caso, os utentes do
SNS) a ficarem “entalados” na discussão entre quem (o Governo), eventualmente,
“exagera” no entendimento de que o “trabalho dá saúde” (mantendo por acção ou
omissão sobreintensificado o trabalho dos profissionais de saúde) e quem (os profissionais
de saúde) contrapõe que, assim, a saúde dá trabalho… demasiado.
(publicado
no quinzenário GAZETA DA BEIRA de 25/5/2017 - http://gazetadabeira.pt/joao-fraga-de-oliveira-51/)
Ora aqui está uma análise que me parece estruturada e vista sem "óculos" de distorção preconceituosa. Como aliás é seu apanágio, João.
ResponderEliminarÉ caso para me envaidecer perante um comentário tão qualificado como é o do Fernando. Que agradeço.
EliminarMas, como ouço por ai os agentes comentadeiros do défice aconselhar ao Governo acerca da tal "saída...", "nao embandeiro em arco" limito-me a reconhecer que apenas escrevinhei o que fui por aí vendo, ouvindo e lendo".