sexta-feira, 16 de junho de 2017

“Ó tempo volta pra trás”

A cantiga, se bem me lembro de Manuel Paião e Eduardo Damas, encheu a praça de forma inopinada, naquela voz possante do António Mourão, que adivinhei logo nos primeiros acordes da música, apesar de já nem fazer ideia de quando terá sido a última vez que a ouvira.
 E se o tempo não volta para trás, uma memória selectiva pode transportar-nos às coisas boas que vivemos, e esta música fez-me voar aos tempos de rapaz em Lisboa, cheia de migrantes dos quatro cantos do país, que se cruzavam pelas ruas com um rádio portátil ligado muito alto, onde a toda a hora se ouviam músicas brasileiras como “estava na peneira/estava peneirando/estava no namoro/estava namorando” ou “quem eu quero não me quer/quem me quer mandei embora”, e tantas outras de grande sucesso.
E fiquei emocionado como a memória me trouxe com  nitidez aquelas primeiras imagens do conterrâneo António Gaspar, com muitos anos de vida na capital, que me foi receber a Santa Apolónia, depois de uma noite inteira de viagem no chamado comboio correio, com bancos de madeira, que partira do Porto às 23H do dia anterior; do Altinho, casa de comidas aonde fomos almoçar, na zona do Campo de Santana, Paço da Rainha, Gomes Freire.
Foi como se estivesse a ouvir o Gaspar apresentar-me ao Cunha, gerente da casa: “Ó Cunha, tenho aqui um rapaz da minha terra que vai precisar de comer cá, mas ele não tem dinheiro”! “Alguém há-de pagar”, foi a resposta.
Era domingo e o almoço foi cozido, que não comi nem metade da pratada, que já vinha feita para a mesa; ali não havia “serviço à lista”; a gente sentava-se e esperava o que viesse, que já se sabia olhando para os outros a comer…
Fiquei a saber que a regra era 100$ por semana pelo jantar, pequeno almoço e marmita do almoço do dia seguinte, que se levava para o trabalho; depois o Gaspar levou-me ao Beco da Bempostinha para ser apresentado à senhora do quarto que tinha acertado para mim por 100$ mês.
Naquele tempo recebia-se à semana de seis dias e o primeiro salário foram 30$ dia,  que dava 180$; paga a comida, ficava com 80$; contas simples, 80 X 4= 320$ mês, menos 100$ do quarto, ficavam 220$ linpos; que feliz me sentia, senhor de mim próprio!
Galgados vários degraus no tempo, cheguei aos 400 contos mês,  mais carro da empresa para uso total, mas nunca mais consegui ser tão feliz, felicidade mesmo, como naquele tempo em que me governava com 220$...

Amândio G. Martins


5 comentários:

  1. Como o meu companheiro de lutas e de letras evocou o António Mourão, fadista já falecido e duma voz inconfundível, que teve a sorte de gravar a canção "Ò tempo volta para trás", que foi um êxito comercial, mas que lhe arranjou alguns problemas, dado que alguns fanáticos afirmavam que esta canção era uma mensagem a pedir o retrocesso do 25 de Abril. O António Mourão foi meu colega de classe, na escola primária, é natural de Montijo, e o seu nome é António Manuel Anaia Pequerrucho. Paz à sua alma.

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  2. Fico grato ao senhor Tapadinhas por este esclarecimento. Na verdade, porque há muito lhe perdi o rasto, escapou-me a notícia do seu falecimento. Contemporâneo de artistas como António Calvário,Madalena Iglésias, Artur Garcia e Simone, entre outros que ainda cá estão todos, era razoável esperar que ainda fosse vivo... Conhecí-os a todos ao vivo, no teatro de revista como em outras situações, porque era gente que contava no panorama artístico do país desse tempo.

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  3. Fico sempre grato quando alguém da minha geração lembra momentos normais e até felizes que se viveram na chamada "Noite negra do fascismo". Nos últimos anos, tem sido montado um refinamento superior de esvaziamento do que se construíu e fez de 1926 a 1974. Depois de 43 anos de exposições, conferências, livros, filmes sobre a PIDE, Tribunais Plenários, Tarrafal, censura, etc., agora ainda não ficaram satisfeitos. Para além da "óbvia" ponte 25 de Abril, parece que todo o património nacional, cultural, civil, militar, foram construídos depois de 1974. Nos 26 anos que vivi antes, nada se fez, nada se contruíu, foi um buraco negro na História. Porque será que me lembrei agora do grande herói, lídimo democrata e grande progressista chamado José Estaline?

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    1. O Sr. Manuel Martins, no plano dos fautores, compara o "Diabo" (sem lhe citar o nome) com o "Demo"! Mas vale sempre a pena nunca deixar de relembrar tanto o "Tarrafal" como os "Goulag".
      "Coitadas" da Simone e da Dulce Pontes, que essas cantam sempre bem quer numa ditadura quer numa democracia. Embora com a letra possam ter problemas no primeiro daqueles regimes...

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    2. Os tempos são diferentes e muitas pessoas bailam conforme o vento. Nada tenho contra a ideologia de cada pessoa, exigindo que também respeitem a minha. Contudo, há um valor, que deve ser alicerce primordial da sociedade; a verdade. Só que o tempo faz esquecer umas situações e, conforme as conveniências, valoriza outras. Quanto aos lutadores contra o regime fascizante de Salazar/Caetano, após o 25 de Abril, apareceram como cogumelos e para sua implantação confirmavam-se uns aos outros. Quando se vive muito e estamos atentos, já ando por cá há mais de oito décadas, somos testemunhas de actores em muitos momentos. No II Congresso da Oposição Democrática, realizado em Aveiro, em 1969, só conseguimos disponíveis, para representar o distrito de Setúbal, quatro delegados - (Manuel Cabanas (Barreiro), Dr. Herculano Pires (Almada), Artílio Batista(Moita) e Joaquim Carreira Tapadinhas (Montijo) - em 1973, no III Congresso, também em Aveiro, só de Montijo éramos uns dez. Isto a propósito da evolução política das pessoas, pois convém recordar que Simone de Oliveira, uma artista popular, que fez carreira no tempo dos referidos cantores, vencedora do Festival da Televisão, no período marcelista era colaboradora fixa no jornal Época. Quanto à Dulce Pontes, nascida em Montijo, na rua onde ainda moro, foi minha aluna de Português e é uma digna representante da canção e da música portuguesa de que nos devemos orgulhar. Quanto a percursos artísticos e particulares, as vidas destas cantoras são muito diferenciados, também porque são de gerações diferentes, vividas num mundo, agora, numa evolução muito rápida. Com verdade, mesmo inconveniente que ela seja, devem assentar as nossas afirmações.

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