sábado, 24 de março de 2018


“A verdade era bela, mas doía nos olhos”...


A terminar o seu livro autobiográfico “As Palavras”, Jean-Paul Sartre, que  com Albert Camus foi uma das principais figuras do existencialismo, diz assim:

“Falsificado até aos ossos e mistificado, escrevi alegremente sobre a nossa infeliz con dição. Dogmático, duvidava de tudo, excepto de ser o eleito da dúvida; restabelecia com uma das mãos o que destruía com a outra e tomava a inquietação como a garantia da minha segurança; era feliz.
                                                (...)
Voltei a ser o viajante sem bilhete que era aos sete anos: o condutor entrou no com partimento e fita-me, menos servero que outrora: na realidade, só deseja ir-se embora, deixar-me concluír a viajem em paz; basta que eu lhe dê uma desculpa válida. Infelizmente não acho nenhuma e nem tenho, aliás, vontade de a procurar.

Desinvestí-me, mas não abjurei das ordens: continuo a escrever. Que outra coisa fazer? É o meu hábito e é, também, o meu ofício. Durante muito tempo tomei a pena por uma espada; agora, conheço a nossa impotência. Não importa: faço e farei livros; são necessários; sempre servem, apesar de tudo.
                                                                        (...)
Quanto ao mais, o velho edifício ruinoso, a minha impostura, é também o meu carácter: livramo-nos de uma neurose mas não nos curamos de nós. Gastos, obliterados, humilhados, encantoados,  passados em silêncio, todos os traços da criança permanecem no quinquagenário.
                                                          (...)
O que eu amo na minha loucura é o facto de me ter protegido, desde o primeiro dia, contra as seduções da elite: nunca me julguei feliz proprietário de um “talento”; a minha única preocupação era salvar-me – nada nas mãos, nada nos bolsos – pelo trabalho e pela fé. Desta feita, a minha pura opção não me elevava acima de ninguém: sem equipamento, sem ferramentas, dei-me inteiro à acção para inteiro me salvar. Se arrumo a impossível salvação para o quarto das velharias, o que me resta? “


Amândio G. Martins

                                                                     





3 comentários:

  1. Fiquei deveras curiosa para ler essa obra do Sartre!
    Seu blog foi uma grata surpresa, sou apaixonada por palavras e cartas!
    https://recantodaguerreira.blogspot.com.br/

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  2. Este seu texto, sendo embora uma citação, é das coisas mais bonitas ( diria melhor, tocantes...) que este blogue viu nas suas páginas. Opinião pessoal? Claro, mas "o que acontece é o que acontece de nós nesse acontecer", não é? Isto disse-o Vergílio Ferreira que, por acaso, também lá andou pelo existencialismo...

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  3. Na colecção "Sintese", da Editorial Presença, saíu em 1970 um livro justamente de Jean-Paul Sartre/Vergílio Ferreira com o título "O Existencialismo é um Humanismo", do qual comprei na altura um exemplar da 3ª edição.

    Bonitas são também as palavras do seu comentário. Obrigado.

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