“A verdade era bela, mas doía nos olhos”...
A terminar o seu livro autobiográfico “As Palavras”,
Jean-Paul Sartre, que com Albert Camus foi
uma das principais figuras do existencialismo, diz assim:
“Falsificado até aos ossos e mistificado, escrevi
alegremente sobre a nossa infeliz con dição. Dogmático, duvidava de tudo,
excepto de ser o eleito da dúvida; restabelecia com uma das mãos o que destruía
com a outra e tomava a inquietação como a garantia da minha segurança; era
feliz.
(...)
Voltei a ser o viajante sem bilhete que era aos sete anos: o
condutor entrou no com partimento e fita-me, menos servero que outrora: na
realidade, só deseja ir-se embora, deixar-me concluír a viajem em paz; basta
que eu lhe dê uma desculpa válida. Infelizmente não acho nenhuma e nem tenho,
aliás, vontade de a procurar.
Desinvestí-me, mas não abjurei das ordens: continuo a
escrever. Que outra coisa fazer? É o meu hábito e é, também, o meu ofício.
Durante muito tempo tomei a pena por uma espada; agora, conheço a nossa
impotência. Não importa: faço e farei livros; são necessários; sempre servem,
apesar de tudo.
(...)
Quanto ao mais, o velho edifício ruinoso, a minha impostura,
é também o meu carácter: livramo-nos de uma neurose mas não nos curamos de nós.
Gastos, obliterados, humilhados, encantoados,
passados em silêncio, todos os traços da criança permanecem no quinquagenário.
(...)
O que eu amo na minha loucura é o facto de me ter protegido,
desde o primeiro dia, contra as seduções da elite: nunca me julguei feliz
proprietário de um “talento”; a minha única preocupação era salvar-me – nada
nas mãos, nada nos bolsos – pelo trabalho e pela fé. Desta feita, a minha pura
opção não me elevava acima de ninguém: sem equipamento, sem ferramentas, dei-me
inteiro à acção para inteiro me salvar. Se arrumo a impossível salvação para o
quarto das velharias, o que me resta? “
Amândio G. Martins
Fiquei deveras curiosa para ler essa obra do Sartre!
ResponderEliminarSeu blog foi uma grata surpresa, sou apaixonada por palavras e cartas!
https://recantodaguerreira.blogspot.com.br/
Este seu texto, sendo embora uma citação, é das coisas mais bonitas ( diria melhor, tocantes...) que este blogue viu nas suas páginas. Opinião pessoal? Claro, mas "o que acontece é o que acontece de nós nesse acontecer", não é? Isto disse-o Vergílio Ferreira que, por acaso, também lá andou pelo existencialismo...
ResponderEliminarNa colecção "Sintese", da Editorial Presença, saíu em 1970 um livro justamente de Jean-Paul Sartre/Vergílio Ferreira com o título "O Existencialismo é um Humanismo", do qual comprei na altura um exemplar da 3ª edição.
ResponderEliminarBonitas são também as palavras do seu comentário. Obrigado.