A Caverna e o Tejo
*Cristiane Lisita
Inspirada no mito da caverna, em Platão, a obra A
Caverna, de José Saramago, traz uma compreensão atual a respeito daquela
construção literária. Tem como premissa uma crítica sobre o capitalismo, que impacta
e destrói as sociedades tradicionais, revelando o Centro de compras como um lugar
onde as pessoas vivem, trabalham e, ademais, se divertem, sem o fulgor do sol, e
sem a flama da compaixão. A narrativa pondera sobre pessoas humildes, a exemplo
do oleiro Cipriano que, pressionado pelas novas tecnologias, se vê compelido a não
mais fabricar a sua cerâmica, trocando-a pela confecção de objetos de plástico
para serem comercializados pelo shopping.
O livro acena para um despertar de consciências, retratando
que nesse prédio majestoso, sob acautelada vigilância, os indivíduos
transmudaram-se em sombras. Não são notados e, igualmente, não percebem as
coisas ao seu redor. O romance de Saramago mostra que o protagonista Cipriano prova
um abismo: “a partir de hoje tudo seria pouco mais que aparência, ilusão,
ausência de sentido, interrogações sem resposta”.
É nas margens do Tejo que A Caverna se
converte em realidade. Torna-se símbolo da condição humana degradada, da fragmentação
da sociedade em classes cada vez mais desiguais. Quem desce os caminhos que
levam ao metro de Lisboa, na estação Oriente, pode observar dezenas e dezenas
de sem-teto pelo largo corredor de mármore, estendidos sobre o tálamo de papelão
em cima do concreto lateral, com seus frágeis cobertores de retalhos. Retalhos,
como as suas vidas, no frio anoitecer, buscando abrigo. Existências tão
desedificadas quanto à sensibilidade humana varrida para o limbo, para o nada.
A maioria desses é homem, muitos com idade mais
avançada, acima da casa dos quarenta ou cinquenta. Em 2013, esses números de
sem-teto chegavam quase aos cinco mil indivíduos, somente na capital, sobrevivendo
em diversos pontos, segundo dados do Instituto de Segurança Social. Certamente,
esses índices progrediram em muito com a crise, lembrando-se, ainda, que há outros
desabrigados que não foram computados naquele censo.
Quem passa pela imponente Gare Intermodal de Lisboa
debruça os olhos nas estruturas metálicas que se assemelham a velas e proas de belos
barcos, como se ondeassem nas águas do Tejo. A ilusão óptica traçada por
Calatrava, o grande arquiteto espanhol, deixa transparecer as luzes que invadem
o Centro de compras e o seu arredor. Reflete também os espectros da crueldade.
Naquele subsolo, entre os sons dos comboios que
chegam e que partem, existe uma caverna que nos remete para os homens
acorrentados, a ter os olhos fixos na parede. Atrás deles, como no mito platônico,
a fogueira a arder, cuja claridade vai projetando sombras, apenas dos objetos
carregados pelos passantes do lado de fora, às costas dos prisioneiros. Não
podendo enxergar, eles acreditam que as sombras sejam a realidade. Se algum
deles fosse libertado e pudesse ver o fogo permaneceria na cegueira, pois,
nunca vira a luz. E se voltasse para a caverna, os companheiros não creriam na
história descrita, e ajuizariam que sair da cava seria um grande mal, sendo preferível
habituar-se às trevas.
Assim, há quem leve todo o tempo para entender as
palavras de Bertold Brecht: "Do rio que tudo arrasta, se diz violento. Mas
não se dizem violentas as margens que o oprimem”. O dia 17 de outubro dedicado à
Erradicação da Pobreza não faz qualquer sentido enquanto durar uma cultura que
substitui os afetos pela artificialidade das relações e das posturas. O
“império do efêmero” na ideologia de Gilles Lipovetsky é eficaz para delinear
essa metáfora da essência dos homens diante da exclusão, da expiação
existencial, quiçá, da própria prisão.
*Cristiane Lisita (jornalista, escritora, jurista)
Uma análise bem documentada sobre o estado da sociedade actual. Só é pena que Saramago, uma referência neste documento, na prática, esteja ligado a um hediondo acto praticado no Diário de Notícias, expulsando da redacção os jornalistas que não lessem pela sua cartilha. A acção é mais difícil que a dissertação. Este blogue está muito enriquecido com a colaboração de Cristiane Lisita, o que é justo de salientar. Obrigado pela sua companhia.
ResponderEliminarUma análise bem documentada e ainda melhor concluída. Portanto, concordo plenamente com o amigo Tapadinhas que a colaboração da Cristiane valoriza, e muito, este blogue.Em relação à crítica a Saramago, não tenho dados suficientes para me pronunciar categoricamente ao episódio referido desses conturbados tempos. Para além da soberba e riquíssima obra que nos deixou, Saramago, nunca foi docilmente alinhado.Por exemplo, era publico, tal como o seu ilustre camarada Urbano Tavares Rodrigues, o seu anti-Estalinismo.
ResponderEliminarPenso que a crise é consequência da aceitação dos modelos a nós impostos, e que os desabrigados são apenas a ponta do emaranhado de problemas que precisamos enfrentar. Que as margens se alarguem!
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