A MÚSICA PORTUGUESA: O social
em movimento
*Cristiane
Lisita
A
música de raiz se traduz nas composições alicerçadas no telúrico, nos costumes,
mais especificamente no modo de ser e de viver de suas gentes. No cancioneiro português
advindo do meio rural, as poetizações revelavam os trabalhos na vindima sob o
sol escaldante, a chuva a destruir as acanhadas plantações, os amores proibidos ou perdidos, as fases da lua e temas diversos referentes ao cotidiano. Essa fonte primária de
reconstituições e reproduções das representações sociais cedeu espaço, no século XIX, para as tradições orais, engajando conteúdos
ideológicos àquela, mormente, no século XX e consecutivo.
O
desenvolvimento do capitalismo liberal e o progresso da agricultura mercantil converteram
a terra em capital de exploração, em outras palavras, em propriedade fundiária capitalista.
Tanto expulsou do campo os pequenos lavradores que não conseguiram concorrer
com as tecnologias, como contribuiu para por em marcha a deterioração das memórias
do campo. Na cidade, ou nas periferias, nasceria um tipo de musicalidade e de expressão
cultural: a da indústria fonográfica aos moldes de um “country” dissimulado. Nesse ínterim, a música
de raiz praticamente desapareceu do cenário, sendo substituída por outras com
conteúdos semelhantes, mas que funcionam como uma espécie de catarse: o
rurícola, na urbe das fábricas, e marginalizado, canta as dores da terra um dia
deixada pra trás.
A
crise que avassala o país, acirrada desde 2008, provocadora de inquietudes, descortinou uma modalidade musical se configurando em manifestação de alguma realidade
existente, e noutras, beirando um escarnecimento dos indivíduos, colocando-os
como sujeitos ativos ou passivos de um mundo fraturado, um pós-modernismo
permeado de inconsistências, na ausência de um caminho mais humanizado a
seguir. Todavia, os belos fados com seus enredamentos rítmicos e formosura melódica,
dos anos 30 e 40, persistiram nessa sociedade que quer ser romântica
e saudosista, relembrando um passado de glórias e de perdas. Ainda, se deve
destacar que há música popular de excelente qualidade, à exceção daquelas
toscas eletrônicas e 'artificializadas'.
A
constituição do direito positivo nacional mostra claramente um compromisso
entre os grupos de sustentação das sucessivas composições de poder.
Dificilmente o modo como as classes menos favorecidas se veem no processo de
desenvolvimento é levado em cálculo. A música exibe uma cultura
predominantemente burguesa, numa conjunção excludente observada na pirâmide
social. Não
compreende que pode ser um mecanismo para alterar a conjuntura
sócio-político e econômica. A propósito, quase a extinguir as violas braguesa, toeira,
amarantina, bem como a sarronca e a rabeca chuleira.
A
música das massas, em Portugal, é de transição. Uma travessia. Quiçá, um rio
que aparta os ricos e os pobres, documentado em suas letras: “Sabe bem pagar,
tão pouco o segredo é total, Tens na ilha uma morada Virtual, No Paraíso Fiscal”.
Também é o reviver de certo rural, uma miragem sobre o tradicional, do qual o
indivíduo fez parte, ou os seus antepassados, e que, de determinada forma, parece
distante. Igualmente, o cidadão comum se vê perdido, na cidade, à espera do milagre,
do “príncipe encantado”, ou do “pai Noel”. Contempla-se o “cowboy” que, por exemplo, se mete num comboio vindo do interior para
ver a amada, na capital. O poder da denúncia, talvez, “se seu cavalo falasse”.
Afinal, “o lugar onde eu nasci, é um lugarejo rude. Longe Hollywood!...”
*Cristiane
Lisita (jornalista, escritora, jurista)
Muito bom!
ResponderEliminarComo de costume, um belo artigo, fundado nos princípios de tudo e elevado ao mais alto conhecimento. Obrigado e continue a brindar-nos com a sua companhia.
ResponderEliminarExcelente abordagem!!!
ResponderEliminar