sexta-feira, 21 de outubro de 2016

A MÚSICA PORTUGUESA: O social em movimento






A MÚSICA PORTUGUESA: O social em movimento


*Cristiane Lisita

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A música de raiz se traduz nas composições alicerçadas no telúrico, nos costumes, mais especificamente no modo de ser e de viver de suas gentes. No cancioneiro português advindo do meio rural, as poetizações revelavam os trabalhos na vindima sob o sol escaldante, a chuva a destruir as acanhadas plantações, os amores proibidos ou perdidos, as fases da lua e temas diversos referentes ao cotidiano. Essa fonte primária de reconstituições e reproduções das representações sociais cedeu espaço, no século XIX, para as tradições orais, engajando conteúdos ideológicos àquela, mormente, no século XX e consecutivo.

O desenvolvimento do capitalismo liberal e o progresso da agricultura mercantil converteram a terra em capital de exploração, em outras palavras, em propriedade fundiária capitalista. Tanto expulsou do campo os pequenos lavradores que não conseguiram concorrer com as tecnologias, como contribuiu para por em marcha a deterioração das memórias do campo. Na cidade, ou nas periferias, nasceria um tipo de musicalidade e de expressão cultural: a da indústria fonográfica aos moldes de um “country” dissimulado. Nesse ínterim, a música de raiz praticamente desapareceu do cenário, sendo substituída por outras com conteúdos semelhantes, mas que funcionam como uma espécie de catarse: o rurícola, na urbe das fábricas, e marginalizado, canta as dores da terra um dia deixada pra trás.

A crise que avassala o país, acirrada desde 2008, provocadora de inquietudes, descortinou uma modalidade musical se configurando em manifestação de alguma realidade existente, e noutras, beirando um escarnecimento dos indivíduos, colocando-os como sujeitos ativos ou passivos de um mundo fraturado, um pós-modernismo permeado de inconsistências, na ausência de um caminho mais humanizado a seguir. Todavia, os belos fados com seus enredamentos rítmicos e formosura melódica, dos anos 30 e 40, persistiram nessa sociedade que quer ser romântica e saudosista, relembrando um passado de glórias e de perdas. Ainda, se deve destacar que há música popular de excelente qualidade, à exceção daquelas toscas eletrônicas e 'artificializadas'.

A constituição do direito positivo nacional mostra claramente um compromisso entre os grupos de sustentação das sucessivas composições de poder. Dificilmente o modo como as classes menos favorecidas se veem no processo de desenvolvimento é levado em cálculo. A música exibe uma cultura predominantemente burguesa, numa conjunção excludente observada na pirâmide social. Não compreende que pode ser um mecanismo para alterar a conjuntura sócio-político e econômica. A propósito, quase a extinguir as violas braguesa, toeira, amarantina, bem como a sarronca e a rabeca chuleira.

A música das massas, em Portugal, é de transição. Uma travessia. Quiçá, um rio que aparta os ricos e os pobres, documentado em suas letras: “Sabe bem pagar, tão pouco o segredo é total, Tens na ilha uma morada Virtual, No Paraíso Fiscal”. Também é o reviver de certo rural, uma miragem sobre o tradicional, do qual o indivíduo fez parte, ou os seus antepassados, e que, de determinada forma, parece distante. Igualmente, o cidadão comum se vê perdido, na cidade, à espera do milagre, do “príncipe encantado”, ou do “pai Noel”.  Contempla-se o “cowboy” que, por exemplo, se mete num comboio vindo do interior para ver a amada, na capital. O poder da denúncia, talvez, “se seu cavalo falasse”. Afinal, “o lugar onde eu nasci, é um lugarejo rude. Longe Hollywood!...”


*Cristiane Lisita (jornalista, escritora, jurista)


3 comentários:

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