Para quem se lembra do modo como vivia a maioria dos portugueses antes
da Revolução: os elevadíssimos níveis de analfabetismo, a falta de saneamento
básico, as taxas de mortalidade infantil, a baixa esperança de vida, a guerra colonial,
a ausência de liberdades cívicas, mesmo na sua mais básica expressão… quem se
lembra disto pode facilmente constatar que as “conquistas de Abril” não foram
mera poesia esquerdista, foram uma inevitabilidade histórica. O salto
civilizacional proporcionado pelo derrube do regime salazarista, então na sua
versão primaveril, representado pelo Marcelo de serviço, foi gigantesco.
Passaram 40 anos e a coisa tem andado para a frente e para trás. A
integração europeia trouxe mais democracia no início mas, nos tempos que
correm, a democracia anda pelas ruas da amargura. O paradigma económico
transforma-se em ditadura com o apoio político do Partido Popular Europeu.
Agora, em Portugal, temos um governo improvável, a já célebre
Geringonça. É uma coisa esquisita que tenta, pela primeira vez em muitos anos,
torcer a lógica do poder imposta pelo “arco da governação”. Com o apoio dos
partidos de esquerda, a Geringonça tenta meter travões ao desvario direitista
do “bom aluno” da Europa. O “bom aluno” que, numa lógica cavaquista, se
destacava por obedecer em tudo à mestra, por não ter opinião nem o mínimo
lampejo de rebeldia, por copiar tudo direitinho do quadro para a sebenta e,
sempre que questionado, repetir palavra por palavra, sem se atrever a
substituir uma vírgula que fosse, a lição mecanicamente decorada. Mudou o aluno
mas a mestra mantém-se vigilante. Isto pede inteligência e engenho.
A Geringonça promete-nos uma outra Primavera. Num ambiente confuso e
hostil, com Passos Coelho a prever todos os dias uma nova desgraça sempre que a
desgraça anterior não se concretiza, Cavaco a desvanecer-se no nevoeiro de onde
nunca saiu e Portas a fazer de conta que é um anjo da guarda a precisar de
reforma, é tempo de repensar o que podemos fazer na recuperação do espírito democrático
que animou a nossa sociedade nos anos que se seguiram ao 25 de Abril de 1974.
Com a Geringonça no poder, parece reanimar-se o debate político.
É tempo de fazermos um debate sério sobre aquilo que estamos dispostos
a prescindir enquanto indivíduos em favor daquilo que precisamos realmente de
ganhar enquanto comunidade.
Carta enviada à directora do Público a 28 de Fevereiro de 2016
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