domingo, 15 de maio de 2016

LISBOA, A OUTRORA BELA








Observo com nostalgia e desalento as transformações da cidade. 
Uma das caturrices dos que contam os anos riscados no calendário sempre afixado na parede, para terem presente os estragos do tempo, é recuperar o que dizem ser o seu tempo, a fatia de passado que consumiram. É uma casmurrice, mas aos velhos perdoa-se, e se chegarmos a isso vamos gostar de ter perdão.

Submerso nesta onda de pensamentos em círculo, sentado numa esplanada sem gabarito, depois de desatendido por não ser turista – sabe lá o empregado de Minas Gerais se não sou um turista de weekend na minha própria terra! - congemino com azedume sobre o quotidiano da cidade, apesar dos meus olhos continuarem babadamente apaixonados por ela.


Esta Lisboa que a dada altura e porque somos daqui, fizemos nossa, transfigurou-se num relampejo. Num momento a viver ao ritmo de uma aldeia grande, no momento seguinte a ser invadida por uma turba e a ter que se adaptar, mesmo que mal.

A cidade desleixou-se, deslumbrada pelos visitantes que a querem fotografar. Anda a vender a alma por patacas, nas selfie em que mal se percebe ser ela.

É uma questão de metafísica o que diferencia os turistas dos viajantes: os primeiros são neoliberais, os outros são pessoas.

O turista é um ser diletante. Passa desatento em frenesim pelos lugares e nesse estonteio, a deslocação de ar que provoca, espaneja a harmonia das coisas, desaloja o sossego do sítio certo, incomoda os vizinhos nas suas rotinas.

O típico, o original, o diferente, que procura sem nada procurar verdadeiramente, ajeita-se ao seu gosto, ou a falta dele – a um turista nada se nega. Só que o original e o típico são enfadonhos ao fim de três dias.

Na descaracterização que se vai operando com as novas cenografias da cidade, presas por argumentos débeis, os autóctones perdem entretanto o norte, não se identificam mais com ela, desfigurada, metamorfose de uma plástica sem emendas nem volta a dar. Os mais inconformados e críticos esbracejam e desistem, os que enchem os bolsos, mesmo que de migalhas, aceitam serem descaracterizados, e calam-se, já que a bem da verdade, nunca falaram.

O turista – os desta classe, a maioria - transforma os locais, em todas as geografias, em fotocópias repetidas e clonadas dos indivíduos taciturnos e emaciados que viram passar nas ruas, todas as ruas, de todos os locais do mundo que visitaram antes: sugaram-lhes a alma, todos iguais e descontextualizados.

O turista é muito diferente de um viajante. Este é curioso, sai para descobrir, respeitador, para se envolver e partilhar, o outro sai por estar farto de se aturar, e se for essa a intenção, ignora e maltrata o sítio onde escolheu ir para perder-se de si mesmo.

Na verdade, ele não sai de casa para descobrir outras culturas, sai para abandonar temporariamente a sua cabeça. 

O que ele quer é o very typical, o petisco - não muito porque não é apreciador – o pastel de nata, que já não se pode ouvir falar dele; sempre, sempre a tirar carradas de fotografias com um pau na mão e a câmara virada para si.

No regresso, conta à cabeça que deixou em casa as coisas que viu, da estranheza dos indígenas falarem uma língua esquisita e os desconfortos por que passou. Apazigua-se enfim com ela para aguentarem juntos mais um ano de trabalho, naquele clima insuportável onde lhes foi dado nascer.


Este movimento de transfiguração, que nos arrasta a todos pelo argumento do dinheiro (turismo é riqueza), não modifica só as paisagens urbanas, os prédios, as lojas, os passeios, vira também do avesso as pessoas que as habitam.

Quando abrirmos os olhos, a cidade é uma outra cenografia que se tornou estrangeira.

São as lojas para os turistas, todas iguais que vendem as mesmas imitações da iconografia portuguesa, fabricadas na Ásia; são as lojas de conveniência, onde os vendedores – eles mesmos – são estranhos daqui, mal falam a língua; são os quiosques de tudo e mais alguma coisa, igual e mau (pastéis de nata, pastéis de bacalhau, pastéis de couratos, pastéis de pastéis, ginga com e sem elas, moscatel, sangrias, vinhos).

Neste rigoroso momento são dez da manhã e regimentos de pessoas guiadas por bandeirolas ou chapéus-de-chuva coloridos, cartazes com nomes dos barcos ou das agências, invadem os interstícios das ruas. Máquinas-armas disparam indiscriminadamente em todas as direcções, para o que mexe ou está parado.

Chacinam as estátuas, as fontezinhas, os fontanários, as fachadas das igrejas, todos os monumentos. Os disparos dos obturadores estilhaçam os azulejos antigos que ainda restam nos edifícios e não estão à venda na Feira da Ladra.


O cidadão tornou-se um refém, enjaulado nos becos da sua cidade.
Divisões blindadas de tuk-tuk, às pazadas de centenas, ribombam como trovões, matraqueiam o mau alcatroado das ruas, estilhaçam o sossego, como brocas hiperactivas de dentistas.

Autocarros atafulhados de publicidade ofuscam a fachada do mosteiro dos Jerónimos, outrora bonita e religiosa.

Em alfama canta-se fado bom e fado mau a qualquer hora do dia ou da noite. Os trinados da guitarra portuguesa ecoam nas vielas e nas ruas escandalosamente estreitas invadidas por sapatilhas de cores berrantes e chinelos de dedo. Escorre música pelas paredes: uma sopa sonora, sons do mundo misturam-se com os sons locais, não há música, há ruído.

Num café imundo e ao abandono – nem os moradores da rua lá iam - fazem agora filas à porta, para tomar uma ginja (das rascas) por 2,50 €, com um pastel de nata comprado numa cadeia de supermercados branqueadora de produtos de má qualidade a custo reduzido, dos que asfixiam os produtores obrigados a venderem abaixo do preço de produção. É o empreendedorismo e a visão do futuro, como agora se chama ao chico-espertismo, roubar o mais que se pode hoje, que o dia de amanhã, a Deus pertence, e de preferência que os Escolhidos tenham a carteira recheada.

O café mantém a sua traça original: imundo e desleixado, com os donos muitos mais contentes, e os vizinhos, alguns, muito mais invejosos: a verem-nos ficar ricos – os outros são todos oportunistas – e eles sem nenhuma boa ideia, para enganar o camone!
Ir para velho – sem opção e escolha – dá nisto: muitas voltas à cabeça, amarguras desnecessárias, a derradeira frustração de não se ter mudado o mundo.


Agora que o tempo escorre das mãos, procuram-se nos outros as culpas da nossa impotência, ruminando para dentro enquanto se veem os rebanhos de turistas que não têm culpa nenhuma, mas a têm toda, a passarem à sua frente, nesta esplanada decorada de mau gosto, com um serviço a condizer.

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