A crise moral e os
impostos
*Cristiane Lisita
“A mesma mão que afaga é a mesma que apedreja”, escrevera
o poeta Augusto dos Anjos. A crise econômica, política e institucional que se
descortina sob o céu de Portugal se ampara na ausência de certos padrões éticos
e morais, pilares de qualquer sociedade. A mesma mão do governo que afaga nos
pleitos eleitorais é a mesma mão que ameaça soçobrar todos os alvedrios, toda a
dignidade da classe média e dos pobres num crepúsculo durável. O que deve
resistir a todas as crises é o ideal de justiça e de equidade, um combate infindável
à extrapolação de valores.
Este não é um país pobre, mas de uma maioria de pobres,
cujo governo os toma como um número a mais. Também é uma terra de alguns poucos
milionários. A concentração de
renda tem aumentado nos últimos anos na zona do euro, e, sobretudo, nesse país
cujos ricos se restringem a 1% da população que detém mais de 20% da riqueza
total. A classe média nacional ainda não tem uma definição plausível para
classificá-la. De acordo com o INE, dados de Dezembro de 2015, a média do
rendimento anual situava-se em cerca de 8.430 euros. Lembre-se de que grande
parte da população não chega a pagar o IRS porque seus salários não atingem o
patamar para cobrança da alíquota. A expectativa da devolução da sobretaxa do
IRS em 2016 também foi frustrada.
No entanto, não faltam impostos a pagar. A
Contribuição Extraordinária de Solidariedade implantada pela Lei n.º 55-A/2010,
incidindo sobre pensões, subvenções e prestações pecuniárias de idêntica
natureza cujo valor mensal fosse superior a 5000 euros, teria por pressuposto a
tributação em 10% referente ao montante que viesse a exceder o patamar dos
5000€. Regra que excluiu os diplomatas e os magistrados reformados que não
tiveram redução salarial. Mas o Tribunal Constitucional os incluiu qualquer
funcionário público, a ter direito a subsidio de férias. São dois pesos e duas
medidas.
Ressalte-se que o IVA talvez seja o imposto
menos ‘desigual’, uma vez que qualquer camada social irá pagar sobre o que
consome, ou seja, a ideia protagonizada é de que quem gasta mais, adquirindo mais
produtos do mercado, seguramente, pagaria mais impostos. O que nem sempre pode
ser considerado teorema absoluto porque o rico costuma ‘economizar’ mais que a
classe média, proporcionalmente. Essa última, quando lhe sobra alguns trocados
busca a poupança ou pequenas aplicações nos bancos, contribuindo com mais imposto camuflado pelo Banco Central.
O país dos católicos transformou-se no país dos impostos
apostólicos. A mão pesada do governo na sua missão de angariar fundos não
perdoa nem mesmo os padres. Não lhes beijam mais as mãos, mas as exigem para a
palmatória. Apesar da Concordata, solenizada em 2004, definindo que as dioceses
e jurisdições religiosas "estão isentas de qualquer imposto ou
contribuição geral, regional ou local sobre os lugares de culto", a
autoridade Tributária e Aduaneira não perdeu tempo e lançou cobranças acerca do
Imposto Municipal sobre Imóveis em inúmeras paróquias e dioceses do país,
desrespeitando o acordo internacional com a ‘Santa Sé’.
Não bastasse, outras propostas circulam e devem ser
definidas até 2019, recomendando a reintrodução do imposto sucessório para
heranças que ultrapassem a casa de um milhão de euros. Primeiro, pode-se contar
rapidamente os cidadãos que possuem essa quantia disponível relativamente ao
seu patrimônio. Segundo, tal cobrança jamais reduziria as desigualdades
latentes e a exclusão social de uma determinada parcela da sociedade, sobretudo
daqueles que possuem em mísero pedaço de chão pra plantar suas batatas. As
disparidades continuam a crescer.
A propósito, a taxa de tributação atinge o patamar
de 56,5% para contribuintes que apresentem rendimentos coletáveis superiores aos
250 mil euros, sendo 54% acima de 80 mil euros. O que isto significa? Além de
mandar a classe média às favas, quer se assegurar que esses contribuintes de
patamares mais elevados peguem seus rendimentos e os remetam para o exterior
onde poderão pagar reduzidos impostos. Como é possível um país que apresente um
dos menores salários mínimos da Europa tenha uma das mais acentuadas taxas de
imposto dentro da OCDE, equiparando-se a países como a Holanda, por exemplo?
Anote-se, ainda, sobre o BCE no programa de compra
de ativos, cujas taxas de juros devem permanecer nos níveis atuais ou mais reduzidos
possivelmente até primeiro trimestre de 2017. Se por um lado, enseja um ânimo
para investidores das Bolsas, por outro, a inflação excessivamente baixa na zona
do euro denuncia a precariedade do consumo, gerando clima de instabilidade por
parte desses investidores de capital de maior risco, diante das dívidas
públicas e privadas. De tal modo, pra quem sobra pagar as dívidas?
No momento atual salda-se imposto de transmissão de
bens pós-morte, na tabela de 10% sobre o valor geral, isentando-se os
descendentes imediatos, ou seja, os filhos, e igualmente cônjuge e pais. A
propalada taxa sucessória em estudo subiria até o valor de 28% como uma espécie
de taxa única. Que nunca será única uma vez que se prossegue pagando outros
impostos e taxas sobre a mesma propriedade de bens imóveis, e outros, como
carros, cujos encargos foram elevados. Essa taxa, depois de uma década, quer
ser ressuscitada. Fato esse que induziu inúmeros cidadãos a anteciparem a
transmissão desses bens, em vida, buscando se evadirem de mais essa tributação
sobre patrimônios milionários.
Não satisfeito, o governo deu seu toque de Midas no
Imposto Municipal sobre Imóveis. Ter uma casa voltada para uma boa exposição
solar, e vista satisfatória não é mais pra qualquer um. Aliás, nunca foi. Mas a
situação piorou. O IMI pode ser agravado na alíquota de 20%, com os novos
cálculos, para o proprietário que possua ou usufrua dessas benesses com seu bem
imóvel voltado para a faixada sul.
Decidiu-se que as casas orientadas para o norte
deverão pagar menos impostos. Espera-se a chegada de pai Noel, com suas renas,
pela chaminé? Por que tanto menosprezo à capacidade de entendimento do povo?
Durante os quatro meses de inverno e mais os outros de chuva certamente a
luminosidade das casas para o norte será mais reduzida, e diminuída, igualmente,
a exposição ao calor do sol. Classe média e pobre pagarão mais outros impostos
e taxas. Vão consumir mais energia elétrica. Vão consumir mais gás para se aquecerem.
Depois de um dia sofrido de trabalho é proibido imaginar uma casa com varanda
que tenha vista, ou o ar fresco de certo verde parque. A meta é esquecer os
sonhos como as moedinhas deslembradas no fundo do bolso. Ouvir as velhas
carpideiras disseminando pessimismo.
Assim, esse povo quer partir. Foram mais de 700.000
mil nos últimos quatro anos que emigraram. Não conseguem sequer
emprego. Pressionam essas pessoas até que não acreditem em mais nada. Os lavradores
guardam sua terrinha pra quem sabe um dia a situação mudar. Outros, pedintes,
desfilam pelas ruas da bela capital, pelos metros, no meio dos turistas, em
busca da mão que possa lhes dar o pão do dia. A classe média se envereda para
dívidas, ou, quando muito, retrai seu padrão de vida. Imposto e novamente
imposto, burocracia desmedida, falta de respeito com essa gente trabalhadora
tratada com cabresto. Não se sabe se “o sal não salga ou se a terra não se
deixa salgar”.
Aquele 1% da população certamente tem nesse solo
suas casas com faixadas retornadas para o sul, mas seus horizontes são mais ao
norte da Europa, pois é noutros sítios que vão gastar ou investir seu dinheiro
embolsado daqueles que consomem das suas fábricas, ou dos seus agronegócios, ou
outros business. A crise moral que
permeia a sociedade é a que reflete desigualmente os desiguais. A crise moral
que ora se revela é como aquela cantada em versos por Augusto dos Anjos cuja
utopia parece desvanecer-se entre a mão que afaga e a mão que apedreja.
Parafraseando: “Vês! Ninguém assistiu ao formidável
enterro de tua última quimera. Somente a Ingratidão - esta pantera -Foi tua
companheira inseparável! (...) O beijo,
amigo, é a véspera do escarro, A mão que afaga é a mesma que apedreja. Se a
alguém causa inda pena a tua chaga, Apedreja essa mão vil que te afaga, Escarra
nessa boca que te beija!”.
*Cristiane Lisita
(jornalista, escritora, advogada)
Este documento é uma análise profunda sobre a realidade da sociedade portuguesa no campo da exploração tributária a que os últimos Governos têm sujeitado o povo deste país. São verdades tão evidentes, mas que os responsáveis não ligam, pois não sabem conduzir o barco a um porto seguro. Estas vozes serenas e justas clamam no deserto, porque ninguém as ouve, mesmo os que são ultrajados pela forma indigna como os governantes os tratam. O grande problema, a tarefa ingente, é como sair desta tragédia?
ResponderEliminarJá tive o prazer de conhecer pessoalmente a Cristiane, e de conviver por duas vezes com ela. A ultima, foi no lançamento de um livro seu sobre o vinho do Porto e a região que o produz. ( prometeu-me um! Não se esqueça!). Agora, assina este excelente texto.Entre outros, ainda recentemente publicou aqui outro, belíssimo, sobre as cotovias (pássaro que nem sequer existe no país dela...) Ou seja, quem dera a tantos de nós, portugas, conhecer tão bem o nosso país, como ela que é brasileira. Uma brasileira, é justo que se diga, para além de inteligente, culta,sensível e despretensiosa, é uma lindíssima mulher. Obrigado, Cristiane, por partilhar connosco a sua criatividade e conhecimentos tão úteis.
ResponderEliminarFormidável, Cristiane Lisita! Continues a escrever desta maneira profunda e verdadeira, pois é preciso trazer à memória de nossos governantes que o crescente tributar está a destruir o amanhã de nosso povo.
ResponderEliminarFormidável! Nada como uma análise objetiva acerca das dificuldades que nós vivemos na atualidade, advindas das duras penas tributárias impostas pelo Governo a este povo sofrido. Parabéns pelo bom senso e capacidade de raciocínio.
ResponderEliminar