O grito mudo das cotovias
*Cristiane Lisita
As cotovias possuem por habitat planícies, de coberto vegetal herbáceo, que derivam do acúmulo de
elementos rochosos e orgânicos carregados pelos mares, pelos rios, a exemplo da
planície do Tejo que se junta à do Sado. Essas aves vivem desde os campos às
altitudes. Fazem-se presentes, ainda, nas turfeiras cujos ecossistemas de zonas
húmidas são comuns no interior dos Açores exibindo solos impermeáveis, o que
provoca o aparecimento de pântanos. Nas charnecas, onde os matos são secos, com
predominância de uma grande biodiversidade da fauna, esses pássaros se estendem
sobre o amarelo a colorir o chão de abril.
Na proximidade do inverno migram abandonando
as zonas frias, buscando o sul da Europa ou norte da África e Médio Oriente.
São alhandras cujos voos ondulantes as conduzem ao infindável, nas ascensões
lentas e declinadas rápidas, e, outra vez, ondeantes ascendem até se reduzirem a
alguns pontos no céu. Os sonidos harmoniosos duram minutos de alegria. Em um de
seus poemas, Shelley escreveu sobre a
cotovia: “Mais alto ainda, sempre mais
alto, De nossa terra tu te arremessas, Qual vapor inflamado; Tua asa vence o
abismo azul, E sobes, cantando e subindo cantas sempre”. Uma prece à vida,
que se elevaria a Deus.
Em
Michelet a cotovia se converte numa insígnia
moral e política: a alegria de um ser invisível que almejaria galardoar o mundo.
Manifesta-se como a imagem do trabalhador, em especial o lavrador, que germina o
sulco da terra, a explodir em florejas tal qual útero a conceber o feto. Assim, a ave esconde seu ninho numa
cova no chão, sob as ervas, construindo-o com ramos e folhas, cuidadosamente atapetado
com penas. Bachelard
assinala que a cotovia transforma-se, deste modo, em alegoria "de
transparência, de dura matéria, de grito".
O
grito mudo das cotovias ecoa, agora, entre as chamas que ardem em Portugal. Dezenas
e dezenas de focos de fogo se esparramam nesse mês de agosto, destruindo parte
da fauna, da flora, de tantos significativos sistemas como o Parque Nacional da
Peneda- Gerês tido pela UNESCO como
Reserva Mundial da Biosfera. Trata-se de uma preciosa beleza paisagística, com
acentuado valor ecológico e etnográfico. Do mesmo modo, as chamas atingem áreas
de Vila Real situada na Região Norte e sub-região do Douro e na antiga província
de Trás-os-Montes e Alto Douro,
encravada em um local privilegiado das Escarpas do Corgo, com suas casas
abrasonadas, cintilando ao fundo a serra do Alvão e a do Marão, esta, um dia cantada
em versos e prosa por Miguel Torga.
O
grito mudo das cotovias denuncia o fogo, muitas vezes alvitre da mão humana
inconsequente, alastrado pelo Peso da Régua, Caldas da Rainha, Loures, Peniche,
Aveiro, Travanca, Lisboa, Viana do Castelo, Godim e tantas outras regiões, mas igualmente
em razão das altas temperaturas e do vento da exclusão social latente, sucumbindo
os agricultores nas suas lavouras de subsistência. O uso da terra na sua função
social precípua, e, ademais, a efetividade das políticas agrárias estão aquém das
necessidades daqueles pequenos e médios produtores que fornecem alimento à mesa
de milhões de cidadãos. O despovoamento em decorrência do êxodo rural, o
envelhecimento da população, a redução nos ofícios da agricultura pela
agroindústria diante da propalada crise, a falta de estímulo para um turismo
rural sustentável, e a memória camponesa tendente a desaparecer, afetam
sistematicamente o mundo rural, acarretando circunstâncias drásticas, entre
elas os incêndios que ora decorrem.
O
grito mudo das cotovias quer se revelar nessa “dura matéria” de Bachelard, denunciando que ainda há um
canto de alegria. As aves anseiam subir
ondeantes e flamejantes no cerúleo espaço: onde possam contemplar e desfrutar
dos rios de água cristalina, onde a vista descansa entre outeiros, choupos,
sobreiros e giestas. Querem observar seus ninhos a suscitar vida no solo
fecundo. Ainda, como prevê Michelet, hão de laurear a terra. Pretendem
ser a imagem do lavrador a cuidar da alfombra verde da vegetação atlântica, e
da vegetação mediterrânea no sul do Tejo, sob o perfume dos alecrins. O grito
mudo das cotovias aspira ecoar, descortinar da fumaça negra, as asas, quiçá, no
devir dourado de outro rural.
*Cristiane
Lisita é escritora, jornalista, advogada.
Desculpe-me este desabafo: o meu 'grito' também já ninguém ouve.
ResponderEliminarEsta, é mais uma espécie em vias de extinção devido à acção predadora humana. Havia tantas aqui há 30/40 anos! Parabéns à autora do excelente texto!
ResponderEliminarLisita,
ResponderEliminarExcelente!
Lisita,
ResponderEliminarExcelente!
Parabéns pela percepção e inteligência textual. Magnífico!
ResponderEliminarBelo texto. Conhecedora da realidade rural, evoca um grito que precisa ser escutado. Muito bem.
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