Alice no país das armadilhas
*Cristiane Lisita
Alice no país das
maravilhas é um clássico da literatura, escrito por Lewis
Carroll, que narra a fábula da menina Alice que deitada sobre a relva, e
inquieta, vê o coelho branco falante, aflito com as horas no relógio, se
penitenciando: “eu sou uma fraude”. Intrigada, ela o segue e se precipita no
buraco da toca dele. Depara-se, então, com um lugar povoado por criaturas alegóricas
e antropomórficas. Diante de um salão redondo e repleto de portas fechadas
espia pela fresta da fechadura, que revela um jardim. Vê sobre a mesa a chave e
um líquido. Bebendo-o ela encolhe e passa pela pequena porta, mas se esquece de
que a chave ficara do outro lado.
Certamente
como Alice, outra ‘Alice’, na sua jornada, se deixou ingenuamente guiar por
seus sonhos. Ao adentrar o jardim do ‘Basalto’ é que ‘Alice’ realmente toma
conhecimento dos indivíduos que habitam e querem comandar aquele país, e das
situações inexoráveis advindas dos mexericos da despeitada Lagarta Aéssia, cachimbando
narguilé, nas suas conversas e conselhos sediciosos. O Rato Ditanaro e as aves de
rapina: Abastácia, Zérra, Surtey, Jucácá, Meigrelles (de prontidão) e outras
tão terríveis a voar, que a menina não quisera amedrontar a gatinha, ao relatar
suas histórias. Miguel, o Lagarto acostumado a receber ordens, imaginando Marcélia,
a Lebre de Março, no seu chá eterno, na preocupação com a manteiga, fielmente escoltada
pelo Chapeleiro Maluco, nas suas charadas, e, na companhia, ainda, do Caxinguelê
dorminhoco. Dudunha, a Rainha de Copas, partidária
e atroz, sempre exigindo cortar a cabeça de qualquer um e por qualquer motivo.
Alice
se defronta com um terreno demarcado como um tabuleiro de xadrez, cheio de provações
mascaradas do jogo. Essa literatura de travessia, na qual são evidenciadas as
criaturas mais esdrúxulas e as situações mais questionadoras, se adapta
perfeitamente aos homens de nosso tempo. Trazendóvisky, naTribuna máxima,
agindo de acordo com um dos passatempos de Dudunha, a rainha de Copas, que, além
de requisitar execuções, gosta de croquet,
No País das Maravilhas as bolas são ouriços vivos e os tacos são flamingos. A finalidade
da regra seria que os flamingos acertassem as bolas, ou seja, os ouriços.
Contudo,
Alice do país das maravilhas chega à mesma conclusão que ‘Alice’ do país das
armadilhas, ao considerar o fato de que os flamingos (pernaltas, peraltas e de bico
grande curvado) podem se voltar contra os jogadores. Os tais delatores. Igualmente
pela tendência dos ouriços de sair pulando, esperando não serem acertados ou escaparem
de alguma Lava Jato. Quando se sente ameaçado, o ouriço-cacheiro (do poder)
enrola-se sobre si próprio, ocultando as partes desprotegidas do seu corpo,
transformando-se numa bola espinhosa bastante complicada de penetrar. Assim,
fogem os ouriços diante da iminência de serem evidenciados seus parasitas e suas
patologias.
Os
soldados serviçais da rainha Dudunha funcionam como arcos encaixados no campo
do jogo, nas terras do croquet. Mas
têm que parar de serem arcos cada vez que a rainha requisita uma execução a fim
de arrastar a vítima até um lugar distante, de modo que, no fim do jogo, nessa
história, os únicos jogadores que sobram são: a própria rainha Dudunha, junto
com o rei (Globo) de ouro e Alice, para ser sacrificada naquele reich tirano. É por isso que o coelho branco, Mouro, insiste em
manter ‘Alice’ no mundo subterrâneo das injúrias: quer ajudar a rainha a
acusá-la de ter comido uma fatia do bolo. Aliás,
recorde-se que a maior notoriedade do croquet
foi sua única participação como modalidade olímpica durante os Jogos de 1900, em Paris. No país das armadilhas, coincidente com as
Olimpíadas de 2016, o croquet se
revela numa intensa modalidade dos bastidores políticos.
Maliciano,
o rei de Copas, pastor pernicioso, silenciosamente perdoa muitas ovelhas condenadas
quando a rainha não está olhando (quer mostrar sua imensa compaixão diante das
coletas que recebe) e seus soldados humorizam, contudo, não obedecem as ordens.
Ele sempre repete: “Se Dudunha é malvado, é meu malvado favorito”. Novamente a
rainha sentencia ‘Alice’, agora, por defender Lulalá, o valete de copas ou o
valente guerreiro, e abona uma visão conveniente da justiça: “sentença antes do
veredito”. Submergida nesse mundo, em algum momento há um
diálogo, no cume de uma árvore, entre Alice e o gato da Duquesa que ela salvara:
Alice - "Você pode me ajudar?"
Gato - "Sim, pois não."
Alice - "Para onde vai essa
estrada?"
Gato - "Para onde você quer
ir?"
Alice - "Eu não sei, eu
estou perdida”.
Gato - "Para quem não sabe
para onde vai, qualquer caminho serve”.
Lewis
Carroll já teria tido uma antevisão escrevendo em Alice no país das maravilhas: “Vejam só, tantas coisas estranhas
tinham acontecido ultimamente que Alice começara a pensar que muito poucas
coisas eram na verdade realmente impossíveis.” A Duquesa avisara acerca da
criptografia: “Você não sabe muito, Alice. Isto é um fato”. Assim, todas as
criaturas temem a rainha de Copas no país das maravilhas, exceto Alice, além da
‘Alice’ do país das armadilhas. Ambas sabem o caminho de retorno pra ‘casa’. ‘Alice’,
essa segunda, volta na sua humildade, não precisa da chave que permanecera do outro
lado da porta. Afinal, a
primeira Alice havia
ensinado: “Vocês não passam de um baralho de cartas!”
*Cristiane
Lisita é jornalista, advogada, escritora. Pós-PhD pela Universidade de Coimbra.
Deveras inteligente e de sensibilidade extrema o artigo da Doutora Cristiane Lisita. Uma perspicácia a ser parabenizada pelo paralelo que estabelece entre o quadro atual da política brasileira e seus personagens. Excelente!!!
ResponderEliminarExcelente artigo ! Parabéns !
ResponderEliminarExcelente artigo !
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