“Palavras que nos nascem”
Da crónica do escritor moçambicano Mia Couto, no JN, respigo
o que segue:
“Tinha vindo do trabalho de campo em Cabo Delgado e dei
conta, já em Maputo, que me esquecera do bloco de notas no acampamento. Enviei
mensagens para que me tentassem encontrar o caderno e, horas depois, vieram as
respostas: encontramos o caderno, estava no arrumário.
A palavra, primeiro, soou estranha. Arrumário? Mas logo tive
a sensação que o termo já existia.Tinha que existir, pois dizia do objecto mais
e melhor que o nosso “armário”, esse improvável e envelhecido local onde se guardavam
armas.
A grande maioria dos moçambicanos tem o português como
segunda língua. Para mim, como escritor e como cidadão, a revelação da condição
histórica das palavras é uma dádiva. Visito as palavras, percebo-as nascentes,
frágeis, inacabadas.
Uma outra vez fui abordado por um jovem moçambicano. Era
engenheiro e queria “oferecer-me uma palavra”. A abordagem comoveu-me desde
logo: palavra é coisa que se oferece? Então ele explicou que, fiscalizando uma
obra, chamou um operário para lhe fazer notar erros graves nas ligações eléctricas,
ao que o homem se justificou dizendo que aquilo “era uma ligação improvisória”.
De novo tive a sensação que a palavra já existia, e como nos
fazia falta aquele termo que traduz tão bem esta cultura de fazer tudo provisório
e de improviso. Falei destes dois casos para chegar a um alerta que não me
canso de repetir. Todos nós amamos as línguas que são nossas de
nascença.Esquecemo-nos que esta nossa família linguística é composta por milhões
de cidadãos que, sendo apressadamente encaixados na categoria de lusófonos, têm
línguas africanas como seu idioma primeiro.
Se a nossa comunidade, a tão propalada CPLP, quer ser
inclusiva deve, em primeiro lugar, entender que a realidade é mais complexa do
que parece.O português é saudado como uma ponte que ajuda na construção da
unidade nacional mas que, em simultâneo, contribui para manter vivas as línguas
de origem fricana”.
Amândio G. Martins
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