sábado, 2 de junho de 2018


“Palavras que nos nascem”


Da crónica do escritor moçambicano Mia Couto, no JN, respigo o que segue:

“Tinha vindo do trabalho de campo em Cabo Delgado e dei conta, já em Maputo, que me esquecera do bloco de notas no acampamento. Enviei mensagens para que me tentassem encontrar o caderno e, horas depois, vieram as respostas: encontramos o caderno, estava no arrumário.

A palavra, primeiro, soou estranha. Arrumário? Mas logo tive a sensação que o termo já existia.Tinha que existir, pois dizia do objecto mais e melhor que o nosso “armário”, esse improvável e envelhecido local onde se guardavam armas.

A grande maioria dos moçambicanos tem o português como segunda língua. Para mim, como escritor e como cidadão, a revelação da condição histórica das palavras é uma dádiva. Visito as palavras, percebo-as nascentes, frágeis, inacabadas.

Uma outra vez fui abordado por um jovem moçambicano. Era engenheiro e queria “oferecer-me uma palavra”. A abordagem comoveu-me desde logo: palavra é coisa que se oferece? Então ele explicou que, fiscalizando uma obra, chamou um operário para lhe fazer notar erros graves nas ligações eléctricas, ao que o homem se justificou dizendo que aquilo “era uma ligação improvisória”.

De novo tive a sensação que a palavra já existia, e como nos fazia falta aquele termo que traduz tão bem esta cultura de fazer tudo provisório e de improviso. Falei destes dois casos para chegar a um alerta que não me canso de repetir. Todos nós amamos as línguas que são nossas de nascença.Esquecemo-nos que esta nossa família linguística é composta por milhões de cidadãos que, sendo apressadamente encaixados na categoria de lusófonos, têm línguas africanas como seu idioma primeiro.

Se a nossa comunidade, a tão propalada CPLP, quer ser inclusiva deve, em primeiro lugar, entender que a realidade é mais complexa do que parece.O português é saudado como uma ponte que ajuda na construção da unidade nacional mas que, em simultâneo, contribui para manter vivas as línguas de origem fricana”.


Amândio G. Martins

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