segunda-feira, 5 de julho de 2021

RETORNO A UM PASSADO VIVO: RELAÇÃO AMOROSA DA JUVENTUDE NO INTERIOR DO BRASIL

Na década de 1950 vim a morar na jovem capital do estado de Goiás, Goiânia, cidade planejada erguida no planalto central, mesma região onde mais tarde se construiu Brasília, capital da República.

Vindo a residir em um bairro que já existia como cidade antes da nova capital, de tradições provincianas, conservadoras e rígidas iguais ou até piores do que as do pequeno lugar do interior do estado do qual sou oriundo, encontrei as mesmas dificuldades de conhecer relacionamentos amorosos como já tentava no meu torrão natal, por já estar em minha plena adolescência. Por aqui havia uma grande vantagem:  a numerosa existência dos chamados lupanares, berço de mulheres que exerciam a considerada profissão mais antiga do mundo, as quais neste texto vou chamá-las pelo nome utilizado na região nordeste do país, “mulher-dama”, termo menos pejorativo do que o comumente denominado, se já não bastasse que suas casas tivessem de usar luz vermelha na entrada, para diferenciar das demais, evitando que algum incauto, ao desejar seus serviços, os procurasse em casas não apropriadas para tal fim.

A dificuldade era que elas, como profissionais, tinham que ser remuneradas. Para os mais abonados era um mar de rosas, para os outros, nos quais me enquadrava, não tinha vida fácil para o tão procurado contato.

Bolamos uma estratégia para fazer frente às dificuldades: reunimos grupo de três, e procurávamos algum lupanar, no dia que geralmente tinha menos freguesia; este dia era chamado o dia de “Xêpa”, termo aqui no Brasil conhecido como dia em que alguma mercadoria está mais barata por excesso de oferta, existindo “xêpa de feira”, agora recente “xêpa de vacina”, que são doses que sobram no fim de um dia de vacinação e que ficam à disposição de faixa etária fora do planejamento inicial. Neste esperado dia, em combinação com a escolhida, através de negociação, ficava assentado que ela atenderia os três, separadamente, com o preço de um, rigidamente cronometrado. A escolha do primeiro era feita por sorteio, cujo sortudo recebia aquilo como ganhar na loteria. O inconveniente era que mesmo sem chegar, às vezes, nos finalmentes, ela costumava encerrar por ter vencido o prazo combinado, apesar dos apelos em contrário para uma pequena prorrogação. Nesta época, tendo em vista o “decurso de prazo” era um privilégio ter ereção precoce, hoje, considerado uma doença de difícil cura. Torna-se interessante salientar que na negociação dos prazos de atendimento era descontado o tempo que nos intervalos dos atendimentos ela ficava agachada sobre uma pequena bacia esmaltada, em movimento das mãos fazendo sua higiene íntima ao som (choque... choque) característico da água.  Soma-se ainda algo que se encontra gravado na minha mente até nos dias atuais: a lembrança de quando a “mulher-dama”ao propor um relacionamento com algum freguês, dizia uma frase muito difundida na época: “Vamos fazer nenê (neném), bem!

Qualquer contato com as chamadas moçoilas casamenteiras tinha barreiras instransponíveis, principalmente para os que não pertenciam as chamadas famílias tradicionais, com agravante de falta de recursos financeiros, aos quais se reservava apenas, no máximo, o conhecido amor platônico. A hipócrita sociedade da época permitia tudo quando se tratava do filho, inclusive estimulando orgulhosamente os seus primeiros contatos sexuais, mas quando se tratava das filhas, a conduta era diferente, com estrema rigidez e vigilância, sendo considerada praticamente uma prisioneira em sua própria casa, reservadas exclusivamente para casamentos, até  alguma doença que as cometia era motivo de segredo, para não dar entender aos futuros pretendentes, que casando com elas estariam também casando com a farmácia, quesito muito utilizado para justificar prováveis  insucessos financeiros.  Mesmo com todo este rigor, algum namoro escondido sem muita ousadia acontecia, embora com pouca frequência, tendo em vista os jovens serem muito temerosos, pois corria, à “boca pequena”, a existência de dispositivos legais, para punição de qualquer ato considerado impróprio, que para alguns eram brincadeiras, para os outros mais ingênuos eram verdadeiros, que consistiam em estabelecer punições com multas progressivas em função da gravidade do ato, na seguinte ordem: “MÃO NA MÃO”, “MÃO NAQUILO”, “AQUILO NA MÃO” e “AQUILO NAQUILO”, este último gravíssimo, sujeito a pesadas multas, prisões e até mortes, justificadas pelo então  considerado consagrado princípio de lavagem de honra.

Com todo este cenário, a provinciana sociedade aceitava, com certa reserva, a existência de festas em locais apropriados, nos permitindo ao som de músicas lentas aproximar-nos das intocáveis donzelas. Tínhamos que ser criativos, era uma ginástica em fazer o rodopio ao longo do salão, ao aproximar da família havia um distanciamento, ao fugir dos olhares dos pais, novo ajuntamento, que dependendo da jovem, não passava “nem pensamento ensaboado” (termo muito usado na época) entre casais, causando com certa frequência nos jovens mancebos, pela grande excitação, terríveis dores nos testículos. A rigor, no meio dos jovens, não existiam dançarinos, mas sim, “encostarinos”.

Um fato marcante ocorreu neste período: entre os jovens existia um de nome não muito comum por aqui, Araquém (origem Tupi significando Pássaro que Dorme), que costumava frequentar estas festas familiares, com atitude estranha: ao chegar ao local desaparecia, somente voltando a reaparecer no final com ares de dever cumprido. Alguns achavam que ele estaria dormindo em algum canto, fazendo jus ao significado do seu nome na língua Tupi. Mais tarde foi comprovado que lá chegando, ele se alojava de maneira furtiva, acima do forro do sanitário feminino, e através de um pequeno buraco localizado estrategicamente ficava observando as donzelas ao fazer suas necessidades, durante toda noitada, sem compartilhar com os colegas esta emocionante situação, procurando evitar concorrência e difusão deste privilégio erótico.

O Araponga (espião) dos trópicos não estava totalmente satisfeito, pois a moçoila por quem nutria verdadeira adoração não costumava frequentar festas, ela de fato foi uma das mulheres mais lindas que tive o prazer de ver na minha longa jornada de vida. Sua diferenciada beleza era conhecida até fora dos limites da cidade, admiração era estendida aos seus pais por ter produzido uma verdadeira obra de arte. Havia quem dizia que ela teria vindo de algum outro planeta. Se fosse nos dias atuais, caracterizados pelo denuncismo exacerbado, ela certamente seria denunciada por genocídio, tal a quantidade de material genético jogado fora em sua homenagem.

O nosso enfocado com este desejo represado padecia continuados sonhos eróticos com sua deusa, vindo causar preocupação no pai que o levou ao médico que lhe receitou calmantes aconselhando a leva-lo a conhecer alguma “mulher-dama”, mas tal era sua fixação que não houve grandes avanços na sua cura, então considerado mal da idade.

Eis que certa noitada de festa, o Araquém foi um dos primeiros a chegar e logo foi se alojando em seu privilegiado “bunker erótico” como era seu costume. Neste dia carregava até uma pequena garrafa térmica com café alegando se tratar de bebida alcoólica. Chegava, após, aquela deusa da beleza, que neste dia teve autorização dos pais para comparecer ao baile acompanhada de atentos parentes, causando um verdadeiro reboliço, ante a possibilidade de com ela “balançar o esqueleto” (dançar), que infelizmente só aconteceu com um jovem preferido pelos familiares. Tudo corria normal, ele já estava até entediado pela observação das mesmas sem variações, eis, que sua preferida resolve ir ao sanitário, sem ele saber que ela estaria na festa. Ao vê-la, pego de surpresa, movido por extrema e incontida emoção, fez um movimento involuntário um tanto brusco, logo por ela percebido, em consequência um forte e agudo grito feminino se fez   ressoar em todo recinto, com desfecho um tanto patético, ao ver aquele ser humano, com fisionomia totalmente transtornada e carregada pelo pavor, pendurado no teto como se morcego fosse.

Como não há nada que possa piorar, o mais grotesco veio acontecer em seguida: ele percorrendo as ruas adjacentes após algumas bordoadas e atrás dele as jovens violadas na sua intimidade, seguidas por parentes e por alguns jovens brincalhões que iam ressoando bem alto um brado alusivo ao nome Araquém: ORA QUEM! O que me fez lembrar, por profana analogia, das procissões religiosas pelas ruas de minha terra natal.

Passado algum tempo, assentada a poeira, o mal-sucedido “Voyeur do cerrado”, passou a tecer comentários sobre as características corporais das donzelas por ele observadas, atrapalhando até promissores casamentos, trazendo com isto severas ameaças, que diante das quais a família resolveu se mudar, levando-o para outras paragens. Com isto, nunca mais se teve notícia dele na região.

Com o advento da construção da nova capital brasileira, Brasília, no belo planalto central, a cidade de Goiânia, o paraíso do centro oeste brasileiro, pela sua proximidade, veio a se tornar uma grande e cosmopolita urbe, com modernização de hábitos, trazendo maior liberação sexual que já ocorria na antiga capital de republica.  Mas ainda permanecem por aqui pequenos ranços provincianos herdados de uma época, em que no Brasil se era feliz e não sabia. 

 Orivaldo Jorge de Araújo
          Goiânia, 05 de julho de 2021 

 

1 comentário:

  1. O que o senhor reporta no seu texto retrata o que por aqui também sofríamos, mais peripécia, menos peripécia...

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