Na década de
1950 vim a morar na jovem capital do estado de Goiás, Goiânia, cidade planejada
erguida no planalto central, mesma região onde mais tarde se construiu
Brasília, capital da República.
Vindo a residir
em um bairro que já existia como cidade antes da nova capital, de tradições provincianas,
conservadoras e rígidas iguais ou até piores do que as do pequeno lugar do
interior do estado do qual sou oriundo, encontrei as mesmas dificuldades de
conhecer relacionamentos amorosos como já tentava no meu torrão natal, por já
estar em minha plena adolescência. Por aqui havia uma grande vantagem: a numerosa existência dos chamados lupanares,
berço de mulheres que exerciam a considerada profissão mais antiga do mundo, as
quais neste texto vou chamá-las pelo nome utilizado na região nordeste do país,
“mulher-dama”, termo menos pejorativo do que o comumente denominado, se já não
bastasse que suas casas tivessem de usar luz vermelha na entrada, para
diferenciar das demais, evitando que algum incauto, ao desejar seus serviços, os
procurasse em casas não apropriadas para tal fim.
A dificuldade
era que elas, como profissionais, tinham que ser remuneradas. Para os mais
abonados era um mar de rosas, para os outros, nos quais me enquadrava, não
tinha vida fácil para o tão procurado contato.
Bolamos uma
estratégia para fazer frente às dificuldades: reunimos grupo de três, e procurávamos
algum lupanar, no dia que geralmente tinha menos freguesia; este dia era
chamado o dia de “Xêpa”, termo aqui no Brasil conhecido como dia em que alguma
mercadoria está mais barata por excesso de oferta, existindo “xêpa de feira”,
agora recente “xêpa de vacina”, que são doses que sobram no fim de um dia de
vacinação e que ficam à disposição de faixa etária fora do planejamento
inicial. Neste esperado dia, em combinação com a escolhida, através de
negociação, ficava assentado que ela atenderia os três, separadamente, com o
preço de um, rigidamente cronometrado. A escolha do primeiro era feita por
sorteio, cujo sortudo recebia aquilo como ganhar na loteria. O inconveniente
era que mesmo sem chegar, às vezes, nos finalmentes, ela costumava encerrar por
ter vencido o prazo combinado, apesar dos apelos em contrário para uma pequena
prorrogação. Nesta época, tendo em vista o “decurso de prazo” era um privilégio
ter ereção precoce, hoje, considerado uma doença de difícil cura. Torna-se
interessante salientar que na negociação dos prazos de atendimento era
descontado o tempo que nos intervalos dos atendimentos ela ficava agachada
sobre uma pequena bacia esmaltada, em movimento das mãos fazendo sua higiene íntima
ao som (choque... choque) característico da água. Soma-se ainda algo que se encontra gravado na
minha mente até nos dias atuais: a lembrança de quando a “mulher-dama”ao propor
um relacionamento com algum freguês, dizia uma frase muito difundida na época:
“Vamos fazer nenê (neném), bem!
Qualquer
contato com as chamadas moçoilas casamenteiras tinha barreiras
instransponíveis, principalmente para os que não pertenciam as chamadas
famílias tradicionais, com agravante de falta de recursos financeiros, aos
quais se reservava apenas, no máximo, o conhecido amor platônico. A hipócrita
sociedade da época permitia tudo quando se tratava do filho, inclusive
estimulando orgulhosamente os seus primeiros contatos sexuais, mas quando se
tratava das filhas, a conduta era diferente, com estrema rigidez e vigilância,
sendo considerada praticamente uma prisioneira em sua própria casa, reservadas
exclusivamente para casamentos, até
alguma doença que as cometia era motivo de segredo, para não dar
entender aos futuros pretendentes, que casando com elas estariam também casando
com a farmácia, quesito muito utilizado para justificar prováveis insucessos financeiros. Mesmo com todo este rigor, algum namoro
escondido sem muita ousadia acontecia, embora com pouca frequência, tendo em
vista os jovens serem muito temerosos, pois corria, à “boca pequena”, a
existência de dispositivos legais, para punição de qualquer ato considerado
impróprio, que para alguns eram brincadeiras, para os outros mais ingênuos eram
verdadeiros, que consistiam em estabelecer punições com multas progressivas em
função da gravidade do ato, na seguinte ordem: “MÃO NA MÃO”, “MÃO NAQUILO”, “AQUILO
NA MÃO” e “AQUILO NAQUILO”, este último gravíssimo, sujeito a pesadas multas,
prisões e até mortes, justificadas pelo então
considerado consagrado princípio de lavagem de honra.
Com todo este
cenário, a provinciana sociedade aceitava, com certa reserva, a existência de
festas em locais apropriados, nos permitindo ao som de músicas lentas
aproximar-nos das intocáveis donzelas. Tínhamos que ser criativos, era uma
ginástica em fazer o rodopio ao longo do salão, ao aproximar da família havia
um distanciamento, ao fugir dos olhares dos pais, novo ajuntamento, que
dependendo da jovem, não passava “nem pensamento ensaboado” (termo muito usado
na época) entre casais, causando com certa frequência nos jovens mancebos, pela
grande excitação, terríveis dores nos testículos. A rigor, no meio dos jovens,
não existiam dançarinos, mas sim, “encostarinos”.
Um fato
marcante ocorreu neste período: entre os jovens existia um de nome não muito
comum por aqui, Araquém (origem Tupi
significando Pássaro que Dorme), que costumava frequentar estas festas
familiares, com atitude estranha: ao chegar ao local desaparecia, somente
voltando a reaparecer no final com ares de dever cumprido. Alguns achavam que
ele estaria dormindo em algum canto, fazendo jus ao significado do seu nome na
língua Tupi. Mais tarde foi comprovado que lá chegando, ele se alojava de
maneira furtiva, acima do forro do sanitário feminino, e através de um pequeno
buraco localizado estrategicamente ficava observando as donzelas ao fazer suas
necessidades, durante toda noitada, sem compartilhar com os colegas esta
emocionante situação, procurando evitar concorrência e difusão deste privilégio
erótico.
O Araponga
(espião) dos trópicos não estava totalmente satisfeito, pois a moçoila por quem
nutria verdadeira adoração não costumava frequentar festas, ela de fato foi uma
das mulheres mais lindas que tive o prazer de ver na minha longa jornada de
vida. Sua diferenciada beleza era conhecida até fora dos limites da cidade,
admiração era estendida aos seus pais por ter produzido uma verdadeira obra de
arte. Havia quem dizia que ela teria vindo de algum outro planeta. Se fosse nos
dias atuais, caracterizados pelo denuncismo exacerbado, ela certamente seria
denunciada por genocídio, tal a quantidade de material genético jogado fora em
sua homenagem.
O nosso
enfocado com este desejo represado padecia continuados sonhos eróticos com sua
deusa, vindo causar preocupação no pai que o levou ao médico que lhe receitou
calmantes aconselhando a leva-lo a conhecer alguma “mulher-dama”, mas tal era
sua fixação que não houve grandes avanços na sua cura, então considerado mal da
idade.
Eis que certa
noitada de festa, o Araquém foi um dos primeiros a chegar e logo foi se alojando
em seu privilegiado “bunker erótico” como era seu costume. Neste dia carregava
até uma pequena garrafa térmica com café alegando se tratar de bebida
alcoólica. Chegava, após, aquela deusa da beleza, que neste dia teve
autorização dos pais para comparecer ao baile acompanhada de atentos parentes,
causando um verdadeiro reboliço, ante a possibilidade de com ela “balançar o
esqueleto” (dançar), que infelizmente só aconteceu com um jovem preferido pelos
familiares. Tudo corria normal, ele já estava até entediado pela observação das
mesmas sem variações, eis, que sua preferida resolve ir ao sanitário, sem ele
saber que ela estaria na festa. Ao vê-la, pego de surpresa, movido por extrema e
incontida emoção, fez um movimento involuntário um tanto brusco, logo por ela
percebido, em consequência um forte e agudo grito feminino se fez ressoar
em todo recinto, com desfecho um tanto patético, ao ver aquele ser humano, com
fisionomia totalmente transtornada e carregada pelo pavor, pendurado no teto
como se morcego fosse.
Como não há
nada que possa piorar, o mais grotesco veio acontecer em seguida: ele percorrendo
as ruas adjacentes após algumas bordoadas e atrás dele as jovens violadas na
sua intimidade, seguidas por parentes e por alguns jovens brincalhões que iam ressoando
bem alto um brado alusivo ao nome Araquém: ORA
QUEM! O que me fez lembrar, por profana analogia, das procissões religiosas
pelas ruas de minha terra natal.
Passado algum
tempo, assentada a poeira, o mal-sucedido “Voyeur do cerrado”, passou a tecer
comentários sobre as características corporais das donzelas por ele observadas,
atrapalhando até promissores casamentos, trazendo com isto severas ameaças, que
diante das quais a família resolveu se mudar, levando-o para outras paragens.
Com isto, nunca mais se teve notícia dele na região.
Com o advento da construção da nova capital brasileira, Brasília, no belo planalto central, a cidade de Goiânia, o paraíso do centro oeste brasileiro, pela sua proximidade, veio a se tornar uma grande e cosmopolita urbe, com modernização de hábitos, trazendo maior liberação sexual que já ocorria na antiga capital de republica. Mas ainda permanecem por aqui pequenos ranços provincianos herdados de uma época, em que no Brasil se era feliz e não sabia.
Goiânia, 05 de julho de 2021
O que o senhor reporta no seu texto retrata o que por aqui também sofríamos, mais peripécia, menos peripécia...
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