domingo, 22 de dezembro de 2013

A sardinha e o burro

Diz-se, e eu reparo que o dizem com alguma justificação, que as pessoas, especialmente as mais novas, lêem cada vez menos, mesmo os alunos que frequentam os anos finais do ensino secundário, e só o fazem por obrigação, lendo unicamente, e às vezes na transversal, os livros do programa. Daí, muitos dos contos tradicionais portugueses, lhes serem estranhos, como o do almocreve, que negociava no interior produtos que adquiria na zona costeira. Entre outras coisas, levava peixe seco, que era de venda não muito difícil na região, por ser produto escasso. Como a clientela se alargava e era fácil adquirir o peixe, o homem, em cada viagem, aumentava a carga do pobre burro, tendo em conta que quanto mais vendesse mais lucraria. O animal, velho e cansado, quase já sem forças para dar coices ou fugir, ia aguentando a sua desgraça, sem que o dono, ganancioso, se apercebesse que estava a consumar-se um fim dramático. Uma madrugada, antes de partirem para a faina, depois da carga ajustada, com o animal quase a desfalecer, o dono achou por bem colocar mais uma sardinha sobre o burro. Por coincidência, mal a arriou, o animal teve uma síncope fulminante, e caiu com toda a carga que tinha sobre si. Não foi o peso desta sardinha que matou o burro, mas sim, todas as outras sardinhas que pesavam sobre o seu dorso.
Este conto pode ser transposto para a actual situação do país, em que o Governo, que faz negócios como os almocreves, julga, mesmo depois da brutal carga de impostos, que o povo (o burro) tudo suporta e, por isso, ainda pode lançar mais algum, para aumentar a receita, já que não foi autorizado a cortar na ração dos mais idosos (burros mais velhos).
O pequeno comércio, nas áreas antigas das cidades, morreu ou está moribundo, porque entre outras contrariedades, novas medidas impeditivas de trânsito deram como resultado o abandono de muitas casas antigas, onde já não é possível morar.
Mesmo com o noticiário de que, cada vez há mais famílias que vão à Sopa do Sidónio e afins para que não morram de fome, que diariamente centenas de contratantes deixam de pagar a água, a luz e o gaz, que os bancos não apressam as ordens de despejo dos apartamentos em dívida, porque não há número suficiente de compradores, e é mais seguro continuarem ocupadas, o Governo não sente e não tem respostas. E nesta situação de penúria, o Governo sonha com mais impostos.
Que o desemprego galopa na realidade e que os números estatísticos não oferecem muita confiança, pois não entram em conta com factores essenciais, como a emigração ou a morte do inscrito. Que as leis, que se discutem e aprovam, são para facilitar os despedimentos e não para favorecer novos empregos.
Perante este quadro, não são os novos impostos, por si, que destruirão as vidas de muita gente e a economia do país. Os que estão em vigor são suficientes para o desastre. Os novos só virão apressar a tragédia.
22.12.2013

Joaquim Carreira Tapadinhas, Montijo  

2 comentários:

  1. Somos tratados como burros, porque o somos!
    Vamos comendo a palha e damo-nos por felizes.
    Há resquicios de uma velha mentalidade, em que sempre é melhor ter alguma do que nada.

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  2. Caro Joaquim, mais uma vez não posso deixar de estar plenamente de acordo. Mas ainda o que me entristece mais, como aqui já disse e redisse, é que não vejo nenhuma alternativa melhor em termos de governo. Os elementos do PS que se aproximam do poder são um susto, no melhor "estilo Sócrates", que aliás ao invés de assumirem os erros deste até o consideram um grande estadista, que faz ainda muita falta. As próximas eleições deverão continuar a aumentar a abstenção para níveis em que a representatividade democrática seja posta em causa. Se houver uma abstenção de 50%, e se um partido só consiga vencer com 35% dos votos, quer dizer que teremos uma solução minorutária de governo representativa de 17,5% dos portugueses...

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