sábado, 24 de dezembro de 2022

AINDA ODEMIRA


A dedilhar pela net veio-me ao ecrã do computador uma entrevista a Miguel Sousa Tavares que, comentando Odemira, falou de um pormenor que, a ser verdade, é abjecto. Que os proprietários empregadores se apropriavam de uma parte dos cerca de 15 mil euros que estes imigrantes asiáticos pagavam para serem colocados a trabalhar nestes postos de trabalho alentejanos. A descontar com trabalho, claro. Custa a crer, de tão medieval que é o esquema, mas a verdade é que, quando ainda jovem, li os romances de Jorge Amado e, salvo erro, Ferreira de Castro, me revoltei com a denúncia que estes escritores fizeram de esquemas de semi-escravidão semelhantes no interior brasileiro. Desta feita com cantinas ou lojas onde os trabalhadores, mercê do isolamento em que estavam, tinham de comprar o seu sustento a crédito e, como não ganhavam o suficiente, ficavam indefinidamente presos a uma dívida que nunca se extinguia. O mesmo se terá passado nas nossas colónias, com diferentes matizes mas seguindo o mesmo diabólico raciocínio.

Enfim, eu que caminho por aquele litoral alentejano desde miúdo e assisti ao advento e crescimento daquelas estufas, nunca imaginei que dentro daquelas altas vedações e portões fechados iria germinar um ambiente tão doentio que permitisse semelhantes relações de trabalho, se é que se pode chamar a isto relacionamento laboral.

Mas não são só estes "empresários" agrícolas que beneficiam do estado de necessidade destas pessoas. Em paralelo, floresce um "mercado" de arrendamento, em que os habitantes locais, proprietários de pardieiros que até há pouco tempo estavam ao abandono, espreitaram esta oportunidade de negócio, fazendo contratos de aluguer draconianos com as mesmas pessoas.

Do meu passado familiar chegaram-me ecos destas situações, quando uma parte dos meus antepassados transmontanos, cavadores descalços quase todos, tiveram de fazer as malas e emigrar para o Brasil primeiro e mais tarde para os "bidonville" da Europa.

O ambiente histórico e económico pode mudar, mas a natureza humana não muda nunca, e por isso nos vemos a cada passo confrontados com estes episódios de miséria moral. Resta-me a esperança que a sua denúncia tenha aplacado a voragem e insensibilidade com que estes e outros imigrantes são tratados.


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