DE AGOSTINHO DA SILVA
O importante,
disse-o um dia a alguém que me pedia conselho, é ser-se o que se é e tornar-se
contagioso. A primeira responsabilidade que nos assiste é saber o que se é:
continuo convencido de que todos nós nascemos com uma partitura na cabeça.
Depois, tantas vezes, ou porque nos faltou mestre de música, ou porque não
encontramos piano à mão, vamo-nos entretendo a tocar coisas que não são da
nossa partitura.
Há então que
fazer o esforço, individual ou colectivo, de achar o mestre e o piano que a
partitura exige. Conseguido isso, devemos tornar-nos contagiosos. Temos na história
de Portugal indivíduos exemplares nesse esforço.
Camões: desde
que resolveu ser Camões, persistiu até ao fim, contra ventos e marés, em tocar
a sua partitura, negando-se a ser o que os outros queriam que ele fosse e sendo
ao mesmo tempo os diversos que foi. Só lhe faltou inventar ele os heterónimos que
foi, para se irmanar a Fernando Pessoa. Deixou-nos esse trabalho a nós: podemos
percorrer a obra que ele foi assinando com o mesmo nome e inventar os heterónimos
que cabem a cada composição.
António
Vieira: outro homem de heterónimos. Ora enverga a modesta roupeta da Companhia,
ora o traje ligeiro de andar nos sertões do Brasil, ora a sumptuosa indumentária
do diplomata europeu. Também podemos percorrer-lhe os actos e os escritos e
inventar heterónimos que os designem na sua diversidade.
Fernando
Pessoa: poupou-nos muito do trabalho de invenção, pois deixou saír de dentro de
si os seus heterónimos. De comum nos três: nenhum deles se rendeu. Com a manha
muito portuguesa em Vieira de se não render e rendendo-se a uma Companhia cuja
regra é que os seus membros se lhe abandonem como cadáveres activos. Mas pobre
da Companhia, que passou a obedecer a Vieira e a andar a reboque dos seus
planos grandiosos.
NOTA – Texto de
resposta a uma pergunta que lhe fizeram, transcrito por
Amândio G.
Martins
O velho e sempre actual Agostinho da Silva sempre presente. Lembrá-lo permanentemente devia ser quase uma obrigação de cada bom cidadão, especialmente dos que falam a sua língua. Embora eu seja sócio da Associação Agostinho da Silva, com sede em Lisboa, não faço o suficiente para expandir o pensamento deste nobre português. Obrigado ao Amândio pela sua insistência.
ResponderEliminarSabe, senhor Tapadinhas, sempre que sou levado a deitar a mão aos textos que o nosso sábio nos deixou, encontro algo de fascinante...
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