quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

DISPERSOS

                                                         DE AGOSTINHO DA SILVA
O importante, disse-o um dia a alguém que me pedia conselho, é ser-se o que se é e tornar-se contagioso. A primeira responsabilidade que nos assiste é saber o que se é: continuo convencido de que todos nós nascemos com uma partitura na cabeça. Depois, tantas vezes, ou porque nos faltou mestre de música, ou porque não encontramos piano à mão, vamo-nos entretendo a tocar coisas que não são da nossa partitura.
Há então que fazer o esforço, individual ou colectivo, de achar o mestre e o piano que a partitura exige. Conseguido isso, devemos tornar-nos contagiosos. Temos na história de Portugal indivíduos exemplares nesse esforço.
Camões: desde que resolveu ser Camões, persistiu até ao fim, contra ventos e marés, em tocar a sua partitura, negando-se a ser o que os outros queriam que ele fosse e sendo ao mesmo tempo os diversos que foi. Só lhe faltou inventar ele os heterónimos que foi, para se irmanar a Fernando Pessoa. Deixou-nos esse trabalho a nós: podemos percorrer a obra que ele foi assinando com o mesmo nome e inventar os heterónimos que cabem a cada composição.
António Vieira: outro homem de heterónimos. Ora enverga a modesta roupeta da Companhia, ora o traje ligeiro de andar nos sertões do Brasil, ora a sumptuosa indumentária do diplomata europeu. Também podemos percorrer-lhe os actos e os escritos e inventar heterónimos que os designem na sua diversidade.
Fernando Pessoa: poupou-nos muito do trabalho de invenção, pois deixou saír de dentro de si os seus heterónimos. De comum nos três: nenhum deles se rendeu. Com a manha muito portuguesa em Vieira de se não render e rendendo-se a uma Companhia cuja regra é que os seus membros se lhe abandonem como cadáveres activos. Mas pobre da Companhia, que passou a obedecer a Vieira e a andar a reboque dos seus planos grandiosos.

NOTA – Texto de resposta a uma pergunta que lhe fizeram, transcrito por

Amândio G. Martins

2 comentários:

  1. O velho e sempre actual Agostinho da Silva sempre presente. Lembrá-lo permanentemente devia ser quase uma obrigação de cada bom cidadão, especialmente dos que falam a sua língua. Embora eu seja sócio da Associação Agostinho da Silva, com sede em Lisboa, não faço o suficiente para expandir o pensamento deste nobre português. Obrigado ao Amândio pela sua insistência.

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  2. Sabe, senhor Tapadinhas, sempre que sou levado a deitar a mão aos textos que o nosso sábio nos deixou, encontro algo de fascinante...

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