Quarenta e oito horas depois fiz
a obrigatória TAC cervical. Despi-me sem preocupações, coloquei aquela bata
ridícula dos hospitais que faz qualquer pessoa parecer que sofre
ininterruptamente dos intestinos, deitei-me na máquina. No fundo, esperava boas
notícias: não tarda, iriam informar-me de que se tratava de uma chatice menor.
Estivemos depois hora e meia debaixo da luz verde escura, crepuscular, da sala
de espera. Quando o radiologista veio falar connosco, acabou nesse preciso
instante a vida que levávamos juntos há mais de duas décadas. O radiologista
tinha a expressão macambúzia de quem apresenta os pêsames a uma família
enlutada: cancro na otofaringe com tumor na cadeia linfática cervical posterior
e metástases no pulmão. Não operável. Tratamentos em doses muito altas de
quimio e radioterapia para, daí a dois a quatro meses, deixar de poder comer ou
respirar.
Decidimos que nunca me submeteria
aos tratamentos da medicina oncológica, às suas armas: as clássicas (cirurgia),
as químicas (drogas) e as nucleares (radioterapia). Estas armas destroem as
defesas próprias do organismo e aceleram frequentemente a sua degradação. Já vi
suficientes doentes de cancro entregues nas mãos da oncologia para tremer de
horror ao pensar que poderia suceder-me o mesmo.
Quando voltámos para casa, não
houve uma lágrima, um gesto de desespero, um queixume. Falámos muito pouco. As
estradas por onde passávamos tantas vezes pareciam agora ter uma realidade
inverosímil, como se fossem pinturas de paisagem antiga. Fazia calor e a luz
era branca.
Durou vários dias seguidos, este
silêncio emocional. As palavras que trocámos em casa foram reduzidas ao mínimo.
Uma consulta com um médico do IPO confirmou tudo o que estava no relatório do
radiologista. Mais tarde, algumas instituições com nomes que tilintam como
lingotes de ouro vieram dizer-nos o mesmo: não havia nada que valesse a pena
fazer.
Essas opiniões não nos
importaram, porém. Numa estranha frieza, só quisemos saber o que faríamos para
acabar com a minha vida quando essa altura chegasse. A Patrícia jurou que não
me impediria de morrer, e até me ajudaria se fosse necessário. Como disse
Plotia ao poeta em A Morte de Virgílio de Hermann Broch: “A morte fecha-se a
quem está só, o conhecimento da morte apenas se desvenda à união de dois
seres.”
Sucede que estes acontecimentos
já me parecem um pouco perdidos no nevoeiro do tempo. Passaram mais de mil dias
desde a tarde abafada de 23 de Maio de 2012, quando fiz a TAC, até à nebulosa e
fresca tarde de Primavera em que estou aqui a escrever isto. Dois anos e onze
meses.
Não sei se nesta evolução, que
não tem cessado de nos surpreender e a quem nos conhece, podemos adivinhar a
lenta condensação de um milagre. Sei que há muita gente a rezar por mim e é com
alegria que agradeço a todos.
Mas sei também que tenho
recorrido a muitas medidas práticas para evitar a sorte ditada pelos
oncologistas.
A primeira foi fazer-me
acompanhar, desde algumas semanas depois da TAC, por um médico homeopático (os
médicos encartados não acham graça nenhuma a que se chame médico a um
homeopata, mas tenham santa paciência). Sob sua orientação comecei por mudar
radicalmente de regime alimentar. Em vez de comer produtos tóxicos como faz a
maior parte das pessoas, passei a alimentar-se com produtos que ajudam o meu sistema
imunitário e alguns que combatem o cancro activamente. Além disso, o médico foi
prescrevendo suplementos alimentares e medicamentos homeopáticos.
Devo à homeopatia a qualidade dos
mais de mil dias de vida que levo de vantagem sobre os médicos oncologistas.
Duas ou três semanas depois de começar a terapia já começava a duvidar de
alguma vez ter tido cancro. Imaginem: um canceroso em estado grave, que pouco
tempo antes estava arrasado de cansaço e pessimismo, foi à praia! Confesso que
tive medo de entrar na água, eu que vivi junto ao mar e mergulhei nas suas
ondas vezes incontáveis. Só no segundo dia consegui decidir-me, e foi tão
grande a felicidade experimentada no corpo que percebi que a Idade do Gelo em
que tínhamos vivido desde o diagnóstico tinha dado lugar a uma Primavera,
incerta e frágil, é verdade, cheia de dias de nuvens, mas tempo de viver e não
de morrer.As semanas correram e fomos passear a Toledo, a Burgos, a Viseu.
Participei em conferências, orientei alunos, fiz todos os dias companhia à
minha mulher e aos nossos seis cães, andei com a minha neta aos saltos sobre os
charcos de água da chuva. As minhas análises foram durante muito tempo boas, e
o meu aspecto muito diferente da maioria dos desgraçados que frequenta os
campos de morte da oncologia. Além disso, como os leitores e leitoras saberão,
escrevi e publiquei três romances, uma colectânea de colunas escritas para
jornais, e finalizei mais um romance e um livro de contos.
Todavia, não houve um único dia
em que não tenha pensado na morte. Nem um. Ao princípio não receei mas também
não compreendi essa Senhora de Negro e, portanto, ofereci-lhe de bandeja as
inúmeras oportunidades que, demoníaca, busca dentro de nós para nos fazer a
vida num inferno ou para nos levar. É verdade que a vontade de viver teve desde
sempre mais poder sobre mim do que a desistência perante a morte ou a ida ao
seu encontro – já não estaria aqui se assim não fora. Mas vida e morte estão
por vezes demasiado próximas e o conflito entre elas que tem lugar no meu espírito
é muito antigo e muito complexo. Sou acompanhado por psicanalistas há muito
tempo. Aquele com quem trabalho desde há alguns anos, e que é uma das
peças-chave do puzzle da minha não-morte, recebeu como uma pancada a notícia do
meu diagnóstico e, depois de uma breve conversa entrecortada de angústia e
silêncio, lembro-me de lhe ter dito com um ar quase triunfante: “Nem sempre se
pode ganhar, doutor…”
Quem é que estava a falar assim
pela minha boca? Quem é que experimentava em mim essa estranha alegria raivosa
que emergira quando soube que tinha um cancro e que este era incurável? Que
força psíquica queria que eu morresse, que as pessoas tivessem misericórdia de
mim, se recordassem, me admirassem? Que parte de mim, velha e zangada, se
aproveitava assim deste meu narcisismo para me arrastar para a morte?
A vida é muito menos cheia de
prosápia do que a morte. É uma espécie de maré pacífica, um grande e largo rio.
Na vida é sempre manhã e está um tempo esplêndido. Ao contrário da morte, o
amor, que é o outro nome da vida, não me deixa morrer às primeiras: obriga-me a
pensar nas pessoas, nos animais e nas plantas de quem gosto e que vou
abandonar. Quando a vida manda mais em mim do que a morte, amo os que me amam,
e cresce de repente no meu coração a maré da vida. Cada lágrima que me escorre
por vezes pela cara ao adormecer, cada aperto de angústia na garganta que sinto
quando acordo de manhã e me lembro de que tenho cancro, cada assomo de tristeza
que me obriga a sentar-me por vezes à beira do caminho quando vou passear com
os cães e interrompe a oração ou a conversa com o céu que me embalava o
espírito, cada um destes sinais provém do falhanço momentâneo do amor dos
outros em amparar-me, e sobretudo do meu em permitir-lhes que me acompanhem.
Quando, pelo contrário, decorre
um dia em que consigo escrever e gosto daquilo que escrevo, em que me curvo
sobre os canteiros para cortar ervas daninhas, em que admiro amorosamente a
energia da Patrícia sentada ao computador ou a trazer lenha para casa, quando
isto sucede, o meu tempo já não é o Tempo Comum mas antes um longo domingo de
Páscoa: sinto a presença amorosa de todos os que precisam de mim e d’Aquele de
quem eu preciso.
O médico homeopata nunca me
prometeu um milagre, e a minha saúde começou a piorar em Janeiro de 2014, cerca
de um ano e meio depois do diagnóstico oncológico. Pouca coisa, ao princípio:
algumas dores no pescoço, na cabeça e na garganta, mais cansaço, problemas
intestinais. Pouco a pouco, desapareceram ou tornaram-se-me impossíveis, um por
um, todos os prazeres físicos de cujo timbre e tom já quase me esqueci: o sexo,
beber um copo de vinho tinto antes do jantar, fazer uma viagem com mais de duas
ou três horas, o gosto da comida sólida a percorrer-me o interior da garganta
com os seus variados sabores e texturas, uma corrida com os miúdos ou os cães.
Houve semanas piores, outras
melhores, mas o tumor do meu pescoço foi crescendo, rebentou como um pequeno
vulcão de pus, e ficou pouco a pouco com um aspecto tão abominável que deixei
de aguentar ser eu a mudar o penso todas as manhãs. O terrível panorama
estragava-me o dia e a melancólica e repugnante tarefa de cuidar do tumor ficou
adstrita à Patrícia, que sabe fazer tudo e não tem nojo de nada. Mais tarde,
alternando com ela, começaram a vir regularmente a minha casa as enfermeiras
dos serviços continuados de saúde.
E, de repente, ia morrendo: uma
grande hemorragia despertou-me a meio de uma noite de Julho de 2014, encharcado
no sangue que brotava de uma veia que o tumor do meu pescoço pôs a descoberto e
enfraqueceu. Desmaiei imediatamente e a Patrícia, não conseguindo ao princípio
acordar-me, pensou que tudo estava acabado.
Ganhei depois, com lentidão e a
custo, uma relativa saúde. Passei dias inteiros deitado. Depois, devagarinho,
melhorei. Uma nova hemorragia, em Dezembro, embora não tenha atingido a
violência da anterior, obrigou-me a considerar uma transfusão de sangue que fiz
num hospital que estava, como quase todos nessa época, mergulhado num tal caos
que passei um dia simultaneamente divertido e ofendido a observar a desordem
que grassava à minha volta.
As duas perdas de sangue fizeram
pender a balança para o lado da minha morte interior: regressei à melancolia
com que me sentava à sua cabeceira conversando com ela nas duríssimas semanas
do Verão de 2012 que se seguiram ao veredicto do cancro. Como é que vou morrer?
Exactamente como?, perguntava-lhe.
Não me referia à chamada morte
natural, que nunca me tinha ocorrido desde o primeiro dia da doença. Falava da
morte infligida por mim próprio.
Entretanto, porém, o
cristianismo, que estava quase esquecido desde o meu baptismo, irrompeu pela
minha vida através da palavra de um Padre que é outra peça-chave do puzzle, mas
desta vez, e ao invés do psicanalista, do puzzle do meu encontro feliz com a
morte.
O suicídio é uma ofensa frontal à
vontade de Deus que quer que a morte de cada cristão seja a sua disponibilidade
para de se entregar à Cruz no momento em que Cristo quiser e da maneira que Ele
decidir. Mas eu e a Patrícia tínhamos jurado que eu morrerei aqui, em minha
casa, e que nada me fará embarcar no carnaval de luzes da ambulância para ir
morrer a um hospital. Esse juramento mantém-se.
Tomámos esta decisão mal tínhamos
saído do parque de estacionamento da clínica onde fiz a TAC e ouvi o
diagnóstico. No meu espírito doente, a morte celebrava jubilosamente a vitória
desse momento e era-me tão impossível controlar ou combater este sentimento
como invocar a luz da esperança, encolhida num canto de mim como um miúdo
paralisado de terror. Enquanto regressávamos a casa, eu pensava na dificuldade e
nos riscos envolvidos no modo como morreu o meu irmão, pensava no salto de uma
ponte, pensava na agonia do veneno, na ignorância sobre medicamentos letais,
mas sobretudo no facto de que todos estes caminhos da morte ainda concedem ao
suicida o tempo suficiente para se arrepender, precisamente aquilo que eu não
queria na altura, mergulhado num tumulto mental que julgava mais voluntário e
corajoso do que de facto era.
Experimentei por vezes os
movimentos da dramatização da minha morte, uma espécie de novela sem invenção e
sem vida cujo maior óbice era o de saber se, na altura definitiva, teria a
certeza absoluta de não haver outra solução. Conseguiria deitar fora como se
fossem trocos sem valor os restos de vida que continuam a cintilar dentro de
mim? E se me enganasse? Se não fossem meros desperdícios? Se valessem mais do
que a escuridão silenciosa do túmulo onde vou apodrecer?
Aquando da segunda hemorragia,
cheguei-me muito próximo de encontrar uma resposta sem alternativa a estas
questões. Depois de fechar os cães e de me despedir brevemente da Patrícia,
sufocada de pavor e lágrimas, ajoelhada no chão sem conseguir olhar para mim,
saí de casa transportando a arma e uma cadeira de plástico onde me sentar com a
coronha da arma apoiada no solo. Quase não tinha forças e tremiam-me as pernas.
A minha camisa estava empapada em sangue e, tendo passado a mão pela cara e os
óculos, vi as árvores, os arbustos, a casa das ferramentas e do tractor, a
encosta, a vinha, através de um nevoeiro vermelho. A decisão com que, apesar da
fraqueza física, andei sem hesitar algumas dezenas de passos, surpreendeu-me a
mim mesmo. Pronto, ia morrer. Aspirei o cheiro intenso, quase ridente, de uma
hortelã-pimenta que nascera ao pé do pinheiro grande sem que, até então, alguém
tivesse dado por ela. Coloquei a cadeira junto a uns troncos cortados,
sentei-me e, já com os canos da arma na boca, o dedo aflorou o gatilho. Senti o
metal como uma coisa sem qualidade, cálida, mortiça, dócil. Tudo me pareceu
vagamente ridículo, o meu gesto, os objectos de que me rodeara. Veio até mim
mais uma vez o cheiro da hortelã. Ergui os olhos que tinha fixados na guarda do
gatilho e vi um pinhal que o sol, através de uma abertura nas nuvens, isolava,
dourado, do verde-escuro da encosta. Ocorreu-me de repente uma vaga de alegria
inexplicável, como se fosse um sinal da presença de Deus à semelhança daqueles
que os textos sagrados referem por vezes. Cheguei à mais simples conclusão do
mundo: estava vivo e, enquanto assim estivesse, não estava morto. Fiquei
verdadeiramente contente, a vida a fervilhar em todas as veias, mesmo as
estragadas. Pousei a arma no chão e regressei a casa. Não olhei para trás, para
a cadeira branca e a arma, que ficaram ali completamente indiferentes à minha
sorte. Ao abrir a porta, a Patrícia, sem conseguir dominar a torrente de
lágrimas que lhe corria pelo rosto, caiu-me nos braços. Ficámos muito tempo agarrados
um ao outro, quase imóveis, como se fôssemos o tronco de uma grande árvore.
Não há muito mais a contar. A
saúde vai piorando pé ante pé.
Deixei para trás a ideia de
suicídio por uma razão muito simples que levou demasiado tempo a descobrir.
Ei-la nas palavras que Mateus atribui a Cristo (Mt 10, 39), palavras que
iluminaram como um relâmpago – e finalmente resolveram no meu coração – a
maneira hesitante como lidei com o sofrimento nestes mais de mil dias:
“Aquele que conservar a vida para si, há-de perdê-la;
aquele que perder a sua vida por causa de mim, há-de salvá-la”.
Paulo Varela Gomes
S. Domingos, Podentes, 10 de
Abril de 2015
Estudamos a "vida" toda a vida e não estudamos, nem nos preparamos para a morte que fatalmente
ResponderEliminarvirá. Ás vezes de forma tão brutal que toda a racionalidade, toda a dignidade nos transforma em
simples marionetes ao sabor dos sentimentos mais contraditórios. Este registo é uma lição de "morte"
e de como se pode aceitar o inevitável, com uma fé que lamentavelmente parece só acontecer no fim.
Uma grande perda. Um intelectual brilhante. Paz à sua alma!
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