sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Orçamento de Estado, a Hidra

Em sua casa ou na associação local, sabemos em que consiste um orçamento. Partimos das receitas previsíveis, sejam ordenado ou quotas, e distribuímos essa receita pelas despesas previstas e desejadas. Um tanto para comida de gato, outro para tabuleiros de xadrez novos, assim em diante. Podemos até ter no nosso plano de atividades alguma tentativa de aumentar a receita, uma promoção ou bilhetes mais caros. O que não conseguimos é obrigar o patrão nem todos os adeptos a pagar mais - pelo menos eu não consigo. O Orçamento de Estado consegue essa proeza. O Orçamento de Estado funciona ao contrário de um orçamento normal. O Orçamento parte das despesas e define as receitas. Aumenta impostos, aumenta taxas, cria impostos. O contribuinte paga. Paga, e não bufa! A Lei, a Justiça, assim o obrigam. Não são apenas as grandes alterações, bebidas açucaradas ou IMI extra, não, altera as regras de importação do rapé!

Orçamento!?
(imagem por Andrew Jian
O Orçamento não só funciona ao contrário, como vai muito mais além. É um monstro mitológico com milhentas cabeças. Atente numa amostra. O Orçamento propõe-se mexer em tudo e mais alguma coisa! Altera a Lei do Trabalho em Funções Públicas. Altera Processo Penal, nas custas de processo de "vítimas dos crimes de escravidão, tráfico de pessoas e violação". Altera procedimentos administrativos em que o "membro do Governo responsável pela área da energia aprova o PDIRD, após parecer da ERSE e do operador do RNT e submissão a consulta pública e discussão na Assembleia da República, nos termos definidos em legislação complementar". Altera competências dos Municípios pois a "assembleia municipal pode [...] conceder isenções totais ou parciais, objetivas ou subjetivas, relativamente aos impostos e outros tributos próprios." Altera o Regime Complementar do Procedimento de Inspeção Tributária e Aduaneira. Altera a Lei Geral Tributária, tal que a "administração tributária pode, a requerimento do executado, isentá-lo da prestação de garantia nos casos de a sua prestação lhe causar prejuízo irreparável".

Temos até artigos que, de facto, não dizem nada, como "No âmbito da estratégia plurianual de combate à precariedade a definir pelo Governo e na sequência do levantamento dos instrumentos de contratação utilizados pelos serviços, organismos e entidades da Administração Pública e do setor empresarial do Estado, devem ser reforçados os mecanismos de controlo e fiscalização com vista à identificação de situações consideradas precárias e da sua progressiva eliminação, de acordo com os regimes legalmente aplicáveis", até boas intenções contam como Orçamento!

Bem vistas as coisas, dos duzentos e picos artigos do Orçamento, a quantidade deles que diz respeito a como distribuir a receita ronda o... zero! O problema não é deste Governo, é geral, vem de trás. O problema é desta democracia, que aproveita o Orçamento - que é importante haver um, concordamos todos - para pressionar a fazerem-se centenas de alterações legislativas num pacote com pouca coerência e menor visibilidade.

Uma democracia que assim funciona, pode melhorar.


Notas:
Pode ver a proposta de Orçamento de Estado, no sítio da Direção-Geral do Orçamento (dgo.pt).
Há um orçamento explicado, pelo governo, que podia ser uma boa idéia mas é mera campanha (oe2017.gov.pt)
Se umas poucas centenas de páginas do Orçamento lhe parecem muitas, então não quer mesmo nada ver a Conta Geral do Estado que tem cerca de uma dezena de milhar, e aparentemente nenhum resumo minimamente legível e fácil de encontrar (parlamento.pt)
Uma versão editada e reduzida deste texto foi enviado ao Público, que não posso comprar todos os dias, pelo que desde já agradeço a quem me faça chegar um alerta se o vir publicado

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