Como é de imaginar, o gabinete do chefe das secretas, o chefe
mesmo, a quem chamam de Director, é o ambiente mais asséptico que existe em
todos os ambientes-gabinetes públicos, todos mesmo, incluindo os blocos
operatórios e os laboratórios sofisticados.
Não é dos líquidos e dos pós, que esses também não se olha a
despesa, é de ser um local onde não entra nem sai uma aragem que seja, muito menos
uma palavra mal balbuciada, que escape aos trambolhões e venha a causar um tsunami seco.
Há gente própria, apropriada dizendo assim, com cursos para
isso, cuja carreira profissional é monitorizarem a tempo inteiro a salubridade,
higiene e estanquicidade do gabinete do senhor Director das coisas secretas.
Não se sabe se são felizes e realizados, cumprem essa função,
vão para suas casas, têm ou não família, e hão de vociferar uma que outra vez
em frente a um jogo de futebol.
Do Director é que nada se sabe. Não é visto em lado nenhum.
Ouvido ainda menos. Nada. Diz-se que é ubíquo, mas não se vê. Também de Deus se
diz isso e igualmente não se vê. Pode ser que havendo dois nessa condição já
seja mais fácil de acreditar na ubiquidade, só vendo-os.
A história que traz hoje a falar nesta história de vida tão
desinteressante, monástica, mas vácua, é a da Maria Benta – parece de
propósito, o nome, mas não é.
Esta mulher ganha sete euros à hora, sem descontos para a
Segurança Social. Se um dia chegar à reforma – não vai chegar – vai bater com
as fuças na porta, não fosse parva e tivesse escolhido outra profissão. Foi um
encarreirar de decisões lastimosas desde pequena, tudo ao lado, mas ela é
feliz. Pelo menos serena, parece.
Maria Benta, como se verá não vai ser pensionista – serviçal até
ao último dos suspiros, mal suspiro já falho de alento vital - mas vai ser uma
heroína, coisa que ela não preferia, por não saber que gosto de boca é esse, e
por que a reforma dá mais jeito para comprar as coxas de frango no
supermercado.
Voltando ao gabinete. Quando o seu locatário está ausente, por
serviço ou o que seja da vida dele, ultra-secreta, o silêncio é inaudível, bem
como qualquer tipo de som, havendo aqui uma incompatibilidade, discordante o
suficiente para ser alvo dos maiores arrasos críticos. Só lá entram os eleitos,
e esses, uma meia dúzia.
A Secretária, cega, surda e muda, salvo seja. O chefe de
gabinete, fidelíssimo, como um retrevier,
o coordenador do departamento dos hackers,
indiscritível tatuado na ponta do nariz mas com gravata verde às pintas, e a
Maria Benta.
Veio cedo, mal acabada de criança, de uma aldeia de uma dessas
serras monótonas que por aí há. A aldeia já não existe, ardeu toda e o seu
conteúdo. Veio a servir para casa da mãe da esposa do senhor Director, a sogra
portanto. Gente credibilíssima, educada em preceito, alinhada com os ditames da
orientação política da nação. Dados a uma exaltação contida da fé. Era um nó
górgio, vê-los em acto de prece, fosse no inicio das refeições, no final das mesmas,
nas benzeduras à entrada ou saída de qualquer das divisões da casa, aos
domingos, finalmente, na apoteose dos rituais exemplarmente executados e
acompanhados nas missas celebradas por um pároco que acabou em bispo de Roma,
onde a família, elas de mantilha, eles de traje de gala negro, foram a beijo de
mão de Papa, só para se ver a importância deste aglomerado familiar com
sobrenome.
A rapariga cresceu neste ambiente e ao mesmo tempo foi-se-lhe
minguando a vontade de qualquer espécie de contacto com qualquer espécime de
ser complementar do seu género. Homens. Fez futuro naquela casta residência,
entregou-se abrindo-se em toda de si, aquela vida de quase clausura.
Entretanto estas coisas não perdoam e a sogra faleceu, o
recheio da casa foi redistribuído e a Maria calhou em herança ao Director, foi
no enxoval.
Pouca foi a mudança, nenhuma. Acabaria aqui o relato se se
continuasse a descrever estas minudências sem-sabor, mas acontece que a Maria é
uma mulher que sem o saber – nem antes nem depois de que está prestes a
acontecer na realidade – vai mudar o mundo. Quer dizer, não é todo, só esta
parte apequenada do que chamamos o nosso mundo.
Quando os filhos do Director e da esposa deste, cresceram o
suficiente para serem considerados adultos, e o Director voltou para casa
depois de uma carreira exemplar como espião, resolveram dispensar os serviços
internos da Benta. Com sessenta anos bem medidos, era tempo de ela dar ares de
viva.
Sendo uma família irrepreensível
– e nisto os espiões são-no -, puseram-na de porteira no prédio da filha mais
velha: Maria da Conceição. Cubículo acanhado e meio-obscuro, com um postigo,
quase a única janela da casa, a dar para as entradas e saídas do prédio. Ela continuou
a prestar serviços em casa dos senhores e para realizar mais algum capital,
para equilibrar as suas contas, simples de fazer, arranjaram-lhe, por ajuste
directíssimo, um lugar de higienizadora do gabinete do senhor Director, na sede
das secretas. Ou seria melhor dizer secreta?
De repente, de um dia banal para outro absolutamente inesperado,
esta mulher passa a conviver (em solitário mas ainda assim a conviver) num dos
locais mais exclusivos do país, só reservado – se já se disse, e se sim nunca é
demais repetir - a uma quase mão cheia
de eleitos.
Tendo em atenção o rigor com que estas coisas funcionam, assim
se imagina, Maria Benta fazia as limpezas às segundas e sextas feiras, entre as
seis horas e trinta minutos e as oito horas, impreterivelmente, e de manhã. Chegava
à portaria, cumprimentava o guarda de serviço, passava ao lado daquela máquina
que dizem tira fotografias aos interiores das pessoas e das coisas, e sendo da
casa e sendo das limpezas, para quê formalismos desses, a obrigarem a ligar a
máquina de propósito as seis horas e trinta minutos das segundas e das sextas?
O guarda dava-lhe uma fita de pendurar ao pescoço e lá ia ela,
elevador acima, que por alguma razão, os gabinetes dos Directores ficam sempre
no último piso.
A entrada no gabinete faz-se por introdução de um código alfanumérico
seguido de reconhecimento plantar e de rosto. O código levou um mês a decorar,
e pelo sim pelo não, trazia-o apontado num papel devidamente dobrado, guardado entre
o seu o seio cheio e o aparador sintético do mesmo, que os espanhóis dizem sujetador, uma palavra muito mais plena
de significado e de entendimento imediato. A nossa língua por vezes complica.
O serviço de Maria Benta obedecia a um protocolo mil e uma
vezes testado, lá fora, no estrangeiro, e replicado cá dentro: não podia mudar
nada de sítio, não tomar atenção a nenhum documento que na mais remota das
possibilidades tivesse ficado aberto (simples para ela que era analfabeta), não
decorar imagens que estivessem a passar no ecrã do computador naquele intervalo
das limpezas, e na eventualidade remota de por azar dos azares, deixar cair uma
caneta que fosse, permanecer queda e hirta acenando só com a mão direita num
movimento de semi-rotação da mão, para aquele olhinho minúsculo quase escondido
na esquina superior direita da moldura
da fotografia do senhor Director com o Senhor Presidente anterior da República.
Moldura esta estrategicamente colocada numa prateleira com livros de certeza muito
sérios dado o facto de estarem revestidos a couro de qualidade superior.
Ela sabia, pelo protocolo, que dentro desse olho minúsculo,
alguém a observava, e que viria, em caso de acidente fortuito, em seu auxílio.
Graças a Deus - que é nessas alturas que mais se necessita da
sua bênção - nunca precisou de acenar em movimento de semi-rotação da mão
direita.
Até o dia. Até os santos claudicam.
Nada de especial aconteceu na véspera desse dia, na antevéspera,
nos anteriores dias a essas datas até mais para trás que se procure. As suas rotinas
foram as de sempre, nenhuma notícia inesperada beliscou a passividade búdica da
senhora, neste caso eterna donzela, Maria Benta, de apelido esquecido e não
chamado para o caso.
Foi numa sexta feira, que explicará algum cansaço visual do licenciado
ao cuidado da observação electrónica do escritório do Boss. Como o país em apreço não tem eventos de maldade humana
extrema, aparte uma seixadas na cabeça e algumas, poucas, mortes por
envenenamento com DDT, em casos de traição amorosa, durante o fim-de-semana as
secretas descomprimem. Não se está a ver quem nos queira fazer mal em vez de
visitar os Clérigos, ou a Torre de Belém e de seguida degustar uma nata ou uma
francesinha ( não se leve literalmente).
Maria Benta nesse dia esqueceu-se do código, e no
reconhecimento facial complicou-se: a placa estava lassa e ela deixou-a em
casa, no sítio habitual: mesa-de-cabeceira, copo de água. Não sendo a primeira vez,
o incidente não desculpa nada. Com ou sem dentes Maria estava mais do que
treinada a cumprir na perfeição os padrões de exigência da sua função. Ultrapassadas
estas contrariedades porque o identificador computacional de tanto a ver acabou
por reconhecer um rosto familiar, ela fez os trabalhos que tinha que fazer.
Nesse dia o computador estava ligado. Passavam imagens de uma
bela paisagem, de verdes e acobreados, num lugar seguramente de muita vegetação.
Via-se quem o pudesse por autorização superior fazer, uma vedação igualmente
verde onde aqui e ali saltavam alegremente por lassidão da malha – assim parecia
– coelhitos jovens.
Ela não viu nada disto porque estava proibida de o fazer. Se o
tivesse feito teria visto que no rigoroso ponto geodésico que marca o centro do
ecrã do computador do senhor Doutor, piscava insistentemente um quadrado com
dizeres, emoldurado por um filete vermelho intenso, também piscante.
Não viu e não tinha que ver.
O que acabou por acontecer foi infinitamente pior do que as consequências.
Pela primeira vez na sua vida, teve uma tontura tão enublada que lhe apagou o
discernimento ocular durante um período de tempo, medido por ela como do
tamanho de uma eternidade (pobre espírito, tão simples e a querer falar da
eternidade!).
Nessa fragilidade que se apossou de um corpo guiado por uma
cegueira temporária, deu com o cotovelo esquerdo (o pior porque era com o
direito que ela orientava os afazeres da vida) no teclado do computador do
senhor Director dos Serviços do “não digo nada a ninguém, só eu sei.”
Ouve um apagão. Entre o licenciado bocejante dar conta e
entrar de rompante e a situação normalizar aconteceu um roubo de bichas e
rastilhos que não aconteceu e ninguém sabe de nada do acontecimento em si.
Maria, coitada da Maria
Benta, iniciou naquele dia uma romaria interminável pelas Consultas Externas de
um certo hospital público, vindo a terminar desmemoriada e desconhecedora
daqueles rostos idiotas que lhe acenavam constantemente a mão em movimento de
semi-círculo e mexiam os lábios emitindo sons que ela não reconhecia.
O Senhor Director desconfia-se que não é ubíquo.
Brilhante, Luís. Estou sem fôlego. Parabéns.
ResponderEliminarJosé, um grande abraço!
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