quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Começar por lado nenhum - JN de 29.11.2017

O Infarmed vai para o Porto, o Infarmed não pode ir para o Porto; a mudança do Infarmed para o Porto não estava decidida, a mudança do Infarmed para o Porto já estava decidida há muito; o Infarmed é para mudar todo para o Porto, só uma parte do Infarmed mudará para o Porto; os trabalhadores do Infarmed têm de habituar-se à ideia da mobilidade, ninguém vai obrigar os trabalhadores do Infarmed a fazer o contrário do que dita a lei e a sua consciência; a mudança do Infarmed para o Porto é um sinal para o país, a mudança do Infarmed para o Porto é, afinal, só uma vigorosa intenção que deve ser devidamente maturada.
Com a banda sonora apropriada, a cronologia rítmica deste caso podia dar um rap. Da euforia à confusão, passando por um estado de negação e esvaziamento político que redundará não se sabe exatamente em quê. Querer descentralizar (a palavra exata é deslocalizar) por impulso dá nisto. Como se as desigualdades territoriais se esgotassem na latitude de um excel que, muito honestamente, duvidamos até que exista. O que é uma pena, porque esta nação pequena está cada vez mais ensimesmada em torno de uma capital que suga todo o valor. E o princípio de disseminação do poder invocado pelo Governo até era meritório. Mas esta tentativa falhada de mostrar altruísmo regional (mais uma) veio apenas provar que, no atual modelo, o Estado é incapaz de promover reais mudanças.
O que leva um homem experiente como António Costa a embarcar nesta montanha-russa de contradições é um mistério. O que leva a classe política do Porto a saltar para as carruagens em andamento em vez de deixar esta trapalhada esvair-se naturalmente é revelador de quão centrifugadora tem sido a gestão dos equilíbrios territoriais nos últimos anos. E de como chegamos a um ponto em que, pior do que aceitar uma esmola, é virar-lhe a cara e desdenhá-la. O Porto não estava à espera da prebenda, já percebeu que ela vem forrada a veneno mas, ainda assim, não tem como enjeitá-la, sob pena de, no futuro, ser acusado de ingratidão. Não sendo trágico, é perverso.
Agora, o que vai ganhar a cidade e a região com esta compensação insalubre pela perda da Agência Europeia de Medicamentos? Ninguém sabe. Nem os ganhos, nem os custos. Mas isso não interessa. Com o Infarmed no Porto, dá-se um passo decisivo na direção de um país mais justo, menos centralista e mais homogéneo (tente não rir). Mesmo que, no fim da linha, só lá abra um departamento de fachada com meia dúzia de gatos-pingados.
É certo que tínhamos de começar por algum lado. Pena que tenha sido logo por lado nenhum.
 
Pedro Ivo Carvalho
SUBDIRETOR do JN
 

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