Nossa Senhora de Paris...
Victor Hugo não teve de passar por isto. Resistiu a todo o
tipo de convulsões, às guerras religiosas, à revolução, à comuna de Paris e a
duas guerras mundiais, até que um incêndio, em pleno sec. XXI fez-lhe, em
poucos minutos, mais mal do que as vicissitudes por que passou em tantos
séculos de história.
Permito-me
transcrever um pedaço do que dela disse o grande escritor:
“A igreja de Nossa Senhora da Paris é ainda hoje, sem dúvida,
um edifício majestoso e soberbo.Todavia, apesar de ter-se conservado bela na
velhice, é difícil não lamentar, não se indignar a gente diante das inúmeras
degradações e mutilações, pelas quais o tempo e os homens, simultâneamente, têm
feito passar o venerável monumento, sem respeito por Carlos Magno, que lhe pôs
a primeira pedra, nem por Filipe-Augusto, que lhe pôs a última.
Sobre a fronte dessa velha rainha das nossas catedrais, ao
pé de cada ruga, encontra-se sempre uma cicatriz, “tempus edax, homo edacior”;
“o que de bom grado traduzirei assim: “O tempo é cego, o homem é estúpido”. Se
tivéssemos paciência para examinar, um por um, os diversos vestígios de
destruição gravados no antigo templo, veríamos que a parte do tempo era a menor
comparativamente com a dos homens da Arte; porque há indivíduos que, nos
últimos dois séculos, se têm intitulado arquitectos.
Nossa Senhora de Paris não é o que se pode chamar um
monumento completo, definido, classificado, não é uma igreja romana nem uma
igreja gótica. É um edifício que não serve de tipo. É um edifício de transição.
O arquitecto saxónico acabava de levantar as primeiras colunas da nave, quando
a ogiva, que chegava com as Cruzadas, veio pousar como conquistadora sobre
esses grandes capitéis romanos que só deviam suportar arcos plenos. A ogiva,
dominante desde então, edificou o resto da igreja. Entretanto, inexperiente e
tímida ao princípio, dilata-se, alarga-se, retrai-se e não se atreve ainda a
arrojar-se e elevar-se em agulhas e lancetas, como fez depois em tantas
catedrais maravilhosas.
Contudo, estes edifícios de transição do romano para o
gótico não são menos preciosos de estudar do que os tipos puros. Exprimem um
matiz na arte, que sem eles estaria perdido. É o enxerto da ogiva sobre o
arqueamento romano. A igreja de Nossa Senhora é principalmente uma amostra
curiosa dessa variedade. Cada face, cada pedra do venerável monumento
representa uma página não só da História do país, mas ainda da história da
Ciência e da Arte. Portanto, para não indicarmos aqui mais do que as principais
circunstâncias, vejamos a pequena porta vermelha que alcança quase os limites
das delicadezas góticas do século XV, enquanto as colunas da nave, pelo seu
volume e gravidade, recuam até à abadia carlovingiana de Saint-Germain-des-Prés.
Parece que medeiam seis séculos entre esta porta e aquelas colunas.
Até os herméticos acham nos símbolos do grande portal uma
abreviatura satisfatória da sua ciência, da qual São Jacques do Matadouro era o
hieróglifo completo. Assim a abadia romana, a igreja filosofal, a arte gótica,
a arte saxónica, o pesado pilar redondo, que faz recordar Gregório VII, o
simbolismo hermético pelo qual Nicolas Flamel preludiava Lutero, a unidade
papal, o cisma, Saint-Germain-des-Prés, São Jacques do Matadouro; tudo está
fundido, combinado, amalgamado na igreja de Nossa Senhora. Este templo, central
e gerador, é, entre as velhas igrejas da capital da França, uma espécie de
quimera: tem a cabeça de uma, os membros de outra, ainda a estrutura de outra,
alguma coisa de todas”.
Amândio G. Martins
Muito oportuno e didáctico.
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