O prazer da leitura...
Editado em Portugal em 1973, transcrevo um trecho do livro
anexo, que viu alterado o título
original – “A many splendoured thing”- para “A colina da saudade”; tinha ainda
algumas reminiscências de quando o li pela primeira vez e deliciei-me agora com
a releitura. Nascida na China, filha de pai chinês e mãe belga e formada na
Europa, onde depois ficou algum tempo, Han Suyin voltou à pátria durante a Revolução de Mao:
“Entre a Terra e o Mar. Falar? Mas dizer o quê? Que o mar
retumbe!... Hoje os povos falam, as multidões vociferam como uma voz de
alto-falante. São os que por si têm o futuro, são os que, resgatados pela fome e
pela miséria e experimentando essas duas grandes fomes de libertação, são hoje
tão anónimos e implacáveis como o trovejante oceano ao afirmarem-se e ao
afirmar o poder da sua classe para destruír a ordem antiga.
Que o mar retumbe! Porque elevarei eu uma voz fraca,
desesperada eu, que me mantenho em precário equilíbrio entre o chão que se
esquiva e as ondas destruidoras, recusando um e outro? O vento do mar
devolve-me as minhas próprias palavras. Asiáticos como eu, pertencentes à
pequena “classe superior”, são eurasiáticos intelectuais. Todos fomos, quase
somos, educados entre dois mundos.
Do eurasiático racial não vale apena falar ou escrever.
Constitui um preconceito mesquinho, de pouca monta, mantido nos pontos extremos
do império, onde subsiste como tema de especulações malsãs e de maledicências
de mulheres brancas já cansadas do jogo de bridge. Mania vexatória mas anódina.
Se certos eurasiáticos de raça trazem um espinho na carne, desconfiam dos
brancos e se queixam de desigualdade é porque eles macaqueiam o modo de vida
dos brancos e as suas injustiças, em vez de rirem de toda essa mistificação
cómica e pomposa que é a vida do branco no Oriente. Não existe problema para os
eurasiáticos que aceitam o seu lado asiático.
Há alguns jóvens asiáticos que se preocupam com a forma de
eurasiatismo intelectual; este, porém, nada tem a ver com a raça. Ligados
sentimentalmente ao seu próprio país pelos ecos e pelo calor da infância, por
reminiscências sensoriais informuladas que formam o pano de fundo dos seus
sentimentos de adultos, os jovens asiáticos são mandados para as Universidades
das missões, e, dali, para Cambridge ou Colúmbia, Paris ou Genebra, para aí se
modernizarem e ocidentalizarem.
Ao deixarmos os belos jardins da Europa do Ocidente e da
América do Norte, essa vida bem ordenada, em que a inteligência é encantada
pela discussão e estimulada pela subtileza, voltamos à nossa pátria.
Regressamos aos nossos mundos de fome, miséria inexprimível, corrupção
flagrante e injustiça gritante, reencontramos as mãos estendidas e as chagas
horrendas. Pelas necessidades prementes do Oriente deixamos as abstracções
académicas do Ocidente.
Somos, no estrangeiro, estudantes favorecidos, com bolsas de
estudo,envolvidos no prestígio fictício das “velhas culturas”e voltamos para os
países colónias, onde somos relegados para a nossa condição.Voltamos à pátria
para nos adaptarmos – e muitos de nós não conseguem – a inferior nível de vida.
Tornámo-nos incapazes de suportar a falta de asseio, de tolerar os escarros.
Torna-se-nos sensível o mau cheiro, reparamos nas moscas e choca-nos
profundamente, habituados como estamos à higiene, o nosso campónio, que afunda
as pernas no estrume das cloacas.Coisas pequenas, mas que abrem largo fosso
entre nós e o nosso povo.
Surgem então as almas dúplices, com duas camadas
sobrepostas. Ao fundo, as emoções profundas, os tabus e as censuras, preferências
e repulsões inexplicadas e obscuras. Por cima, uma pletora de palavras
especiosas, teorias cujo sentido se volatiliza em presença da miséria sem
limites, ideias aceites intelectualmente, mas sentimentalmente impotentes, um
comportamento racional que se esquece logo que começa a ouvir-se rugir, nas
profundidades, o mar. Seres desdobrados! Somos, no nosso trabalho, réplicas com
êxito dos sábios e eruditos do Ocidente. Na vida privada conservamos abrigados
e em segredo amores e amizades; enterramos profundamente os nossos ódios,
reservando para a criança que em nós vive uma morada segura e obscura, livre de
todo o compromisso, refúgio contra o intelecto esquadrinhador que adquirimos
durante as nossas estadias no Ocidente. (...)
Foi na Ásia que vimos desfazer-se o mundo ocidental, esse mundo
que admiramos pela sua perfeição técnica e que, ao mesmo tempo, nos irrita, sem
sabermos justamente porquê. Aqui o vimos destruir-se a si próprio com as
promessas que não manteve, a sua generosidade de múltiplas caras, os seus absurdos
cómodos e redundantes, a sua repugnância por desistir do que alcançou, a sua
parcimoniosa filantropia. Nós, filhos da Ásia, colhemos os frutos – podres ou
maduros – de todo o mal realizado outrora. Quando a “ordem nova” chegou, com as
suas boas intenções e as suas soberbas bandeiras, as suas palavras estimulantes
e a sua unidade, a sua coerência e o seu amor da terra, trazendo uma razão de
viver, ensinando a suportar a morte, iluminando os “hoje”com os “amanhãs que
cantam”, tivemos de escolher”.
Amândio G. Martins
Dum trecho pouco posso inferir mas reconheço que este tem muita densidade de conceitos. Mais do passado, mas que se repercutiram (repetem?) no presente.Relevo aquele que, institivamente, mais me tocou: "....e que vimos desfazer-se o mundo ocidental, esse mundo que admiramos pela sua perfeição técnica e que, ao mesmo tempo, nos IRRITA SEM SABERMOS EXACTAMENTE PORQUÊ".As maiúsculas são da minha conta.
ResponderEliminarO livro tem 357 páginas; o que me permiti transcrever é uma pequena parte, mas pareceu-me dar o tom geral da obra, que a mim me parece muito boa...
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