sábado, 15 de junho de 2019


“A utopia do consenso”...


Por me parecer importante, pelo tema e pela qualidade do autor, transcrevo parte do texto que Valter Hugo Mãe escreveu um dia destes no JN:

“Pondero há anos acerca da oposição natural, uma diferença essencial que nos antagoniza com outras pessoas. Minha convicção humanista é a de que se torna fundamental aprender a ser contrário. A aprendizagem de nos opormos, sem que isso nos destitua de dignidade, sem que isso implique destituír os outros de dignidade, é o único progresso possível na discussão continuada em que as decisões haverão de ser tomadas. Quero dizer, a luta pela democracia é a única oportunidade de justiça, que não será exactamente a de todos, mas é vocacionada para ser a de todos. A maioria é uma vocação para a totalidade. Não é realista esperar, na discussão continuada, implicando cada assunto uma armonização senão por maioria.

O problema que enfrentamos na democracia é mais moral do que ideológico. Pensarmos que o mercado deve ser livre ou mais regulado não é propriamente o que nos preda. O que nos preda passa pela convicção da Direita, desconfiada e avara, de que não temos de partilhar, fazendo assentar a partilha numa vontade esporádica que mais se assemelha à caridade. E passa pelo facto de a Esquerda, esclarecida em relação à legitimidade humana a ser-se acudido, se deitar a um superpoliciamento que escrutina os indivíduos por suas misérias culpando qualquer bem-estar, penalizando todas as conquistas, o que redunda numa desconfiança também.

Enquanto o princípio universal for o da desconfiança, falhamos o esclarecimento de cada um, falhamos na construção da mesma oportunidade para cada um”.


Amândio G. Martins

5 comentários:

  1. É tão bom ler um texto destes! Serve para nos limpar dos olhos e da mente as "lapalissadas" ora telegráficas ora gongóricas que nos invadem o "meio ambiente". Mesmo que discordando, aqui e ali, do autor de "A Máquina de Fazer Espanhois" ( li-o mesmo e foi o que mais gostei dele), discorre, lúcido, sobre um tema central na vida dos seres humanos. Curiosamente - "puxando a brasa à minha sardinha"- o título da crónica diz quase tudo...

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  2. Pareciam combinados, mas não acredito. Valter Hugo Mãe (VHM) escreveu no JN um texto a que, hoje, Pacheco Pereira (PP) "responde" no Público.
    Para VHM, “ser contrário” será uma utopia “cumprida” quando se alcançar o consenso. Há utopias desejadas, as dos que tomam partido, posição. Esta não, visa a concórdia universal, ou seja, é a dos que não tomam partido.

    Cito PP: “As democracias não têm causas teleológicas (… ) nem ‘objectivos consensuais’, porque a essência da democracia é a diferença: pessoas que pensam diferente, que se organizam em partes, com visões do mundo distintas, expressando interesses diferentes” e, mais adiante, “...uma ‘consensomania’, que vem de 48 anos de anátema sobre a política, que os considera momentos altos da vida cívica. Seria tão bom entendermo-nos todos? Não em democracia.”

    O mundo só “pula e avança” em clima de confronto. Que, obviamente, não tem de ser violento ou bélico, mas sim dialéctico.
    Os mundos consensuais metem-me pavor. Recordem Hitler e Stalin. Ou Salazar.
    Por isso, caio para o lado do PP.

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  3. Reflexões todas magníficas, que me fizeram vir à memória outras, menos recentes, mais igualmente pertinentes, em minha opinião ( no caso, de Fernando Savater) :
    “ O sistema político desejável deverá respeitar ao máximo as componentes públicas da liberdade humana: a liberdade de nos reunirmos ou separarmos, a de exprimirmos as nossas opiniões... Assim , um regime político que conceda a devida importância à liberdade insistirá também na responsabilidade social das acções e omissões de cada um ( ... porque às vezes também se faz não fazendo) “
    Pois muitas vezes os “ consensos “ são fragilmente suportados pelos que nada fazem e nada dizem, deixando-se levar pelos que dizem mais ou mais alto , sem contraponto à altura !

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    1. É por isso que "Ética para um Jovem" ( e outros ) é um livro magnífico!

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