terça-feira, 10 de abril de 2018

Arquitecto por decreto

Arquitecto por decreto

- Se eu algum dia, por obra e milagre de santo dos pedreiros e de s. cifrão, tiver dinheiro suficiente para mandar construir uma casa, mais simples ou apalaçada, quero que o traço e o desenho dela, esteja assinado por arquitecto certificado, com diploma passado e reconhecido por Ordem qualificada. Não quero um projecto rabiscado por um engenheiro de estufa, que agora possa intervir com picareta e talocha, ao mesmo tempo que elabora um lugar com exigências de arte arquitectónica. O país dos governantes com licenciaturas frouxas, até domingueiras, engendraram um decreto na Assembleia Legislativa, que repesca para a arquitectura, que lhes permite fazer o pleno - serem engenheiros civis e arquitectos. Com o manto a cair de um Tomé operário, pretendem tais governantes encobrir a desqualificação de uns quantos coxos e limitados por competências, e com isso, desprestigiando uma classe específica e altamente preparada, que são os arquitectos de facto, os únicos mestres capazes de assinar projectos que exigem, arte e design. É por isso que este país, mantém por aldeias, vilas e escarpas, uma imagem rural, preservável umas vezes, mas incompatível, outras, com a paisagem, e de casebre erguido e tintado com cores aberrantes, pelas poupanças dos de recursos esforçados, que mourejaram por terras lá longe, e de onde regressaram com mãos calosas e deformadas, que Régio tão bem desenhou em poema, belo. Só os arquitectos, podem e devem restaurar com o seu saber e traço, tal paisagem e construir uma imagem melhor inserida, e acolhedora com o ambiente!*

-(hoje no Destak-págª16)
(S.Tomé: padroeiro dos arquitectos)
- (poema de JR-A um camarada)
      

José Régio


A UM CAMARADA


Se me dás essa mão calosa e deformada,
Aperto-ta na minha, camarada.
Também, do meu labor, sou eu cativo,
E a tinta que me suja a mão é sangue vivo.

Também, na minha testa, há gotas de suor.
Gelado, o meu. Não sei se teu, pior.
Exausto, ao fim do dia, és uma simples besta
Que dorme; e a insónia, a mim, mais me regela a testa.

Com pedra, terra, cal, cimento, ferro, aço,
Povoas ou constróis cidades. O que eu faço
Não se vê tanto! é longe; é lá no escuro
Das teias do passado e do futuro.

Pedem-te os filhos pão, que após sofrer, lutar,
Nem sempre terás tu para lho dar.
E a mim, - canções, fervor, calor contra o seu frio;
E eu finjo encher a mão no coração vazio!

Teu nome, obscuro som, conhecem-no bem poucos.
Mas o meu, como os doutros que tais loucos,
Já sem sentido por demais ouvido,
Pregoam-no os jornais; - e é o dum desconhecido.

Talvez tu, auto-escravo fixo à terra,
Nunca erguesses o olhar ao céu, e ao que ele encerra.
Eu ergo-o; mas, daquela imensidão composta,
Recaio sobre mim num grito sem resposta.

Cumpre-se, em ambos nós, a velha praga...E em breve,
sobre ti, sobre mim, nos seja a terra leve.
Deixa-os, esses que odeiam, entre nós erguer a espada!
Dá-me a tua mão suja e honesta camarada.

José Régio
(1901-1969) in "A Chaga do Lado" (Sátiras e epigramas)
(Portugália Abril de 1956)

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