Estavam a festejar quase dois anos de uma boa independência vivendo com os seus dois filhos num rés/chão na zona da escola o que evitava pagarem transportes para eles. Tinham deixado a casa dos Pais que os tinham apoiado nestes primeiros anos de casados.
Os seus empregos tinham estabilizado, os ordenados bem geridos estavam a cobrir a renda das três assoalhadas – quatrocentos Euros (mas a Ana tinha-se responsabilizado pela limpeza da escada e com a boa actuação dos moradores estava a conseguir com esforço equilibrado.)
Os móveis da sala, quarto de casal e as camas dos filhos – a pequenina com sete anos e do rapazinho com nove – tinham sido, e continuavam a ser “adquiridos” junto de amigos. Até os electrodomésticos eram aparelhos reciclados dos amigos. Tudo tinha de ser gerido com muito cuidado, esticando os ordenados para cobrir os gastos da luz, da água e do gás e mais os adicionais da TV e da Net, e os passes do casal. Os horários muitas vezes desregulados dos empregadores obrigava a apoiarem-se nos avós para acompanharem os netos da escola até casa… nada que não fosse corriqueiro em muitas famílias.
As férias eram passadas ali nas redondezas: mais brincadeiras nos Jardim, frequência das actividades da Junta de Freguesia. Andavam a fazerem contas para inscreverem os filhos na natação do clube do bairro mas ainda não tinham conseguido e estava prometido que logo que possível a menina iria para a ginástica que muito queria e o rapazinho iria experimentar o futebol. Mas isso seria se ocorresse os aumentos de ordenados que há muito estavam prometidos. O pai ia fazendo uns biscates e assim se ia assegurando uns extras de apanharem o comboio e irem até à praia nos dias de sol.
Um dia a Ana e o Rogério viram uma notícia no jornal que o vizinho do segundo direito lhes deixava na caixa do correio depois de o ler. A notícia referia, com minúcia, os ordenados usufruídos por certas pessoas que apareciam na TV reclamando os impostos muito altos (?) que as suas empresas tinham de pagar, os pedidos de aumentos de ordenados dos trabalhadores, uma certa resistência dos trabalhadores para acompanharem os horários que estes empresários entendiam que o ritmo de produção devia ter. Eles, empresários, é que sabiam e aos trabalhadores competia acompanharem a dinâmica das empresas.
Naquele fim de dia, depois de deitarem os filhos, sentaram-se à mesa da casa de jantar/sala a relerem a notícia. A Ana não conseguiu conter as lágrimas e entre dentes ia dizendo: não somos só nós… tantos como nós e tantos abaixo de nós. Oh! Rogério, se nós os dois juntos tivéssemos sete mil Euros por mês? Já não digo por dia como este (e apontava a foto do jornal).
Limpou as lágrimas, dobraram o jornal, arrumaram as coisas fora do seu lugar, foram aconchegar os filhos e, deitaram-se para recuperarem forças para o dia seguinte.
Maria Clotilde Moreira
Jornal Costa do Sol - 02.05.2018
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