A minha língua
Com o título acima,
da autoria de José Manuel Diogo, transcrevo do JN o texto que segue, que me
parece muito bonito:
“Gosto de te ver saír
da tua boca, sempre molhada e quente, como se fosses um chuveiro tropical ou
uma corrente. Insisto em te encontrar, sejas riso ou lamento, gritos ou
calmaria, ou apenas tempo.
Quero conhecer-te a
pontuação. A pausa fusa, semifusa, onde aparafuso as emoções, onde desfio
contratos e desafio canções. Quero que me contes os tratados com que fizeste
felizes os namorados e aqueles acordos belicosos onde os políticos se
demonstraram mentirosos.Quero que me faças companhia nas noites de luar e nos
dias de sol, faça chuva ou tempestade, sejas ré ou sol.
Quero mastigar-te as
consoantes e abrir-te as vogais com os dentes. Que sejas arte clara e quarto
escuro ao mesmo tempo.Que me chames verde, que eu não duro. Que me guardes no
ramo até caír maduro, segurando na raiva seiva e no fruto, o futuro. Quero
despir-te as sílabas, uma a uma, som a som, como os noturnos se demoram no
piano.Quero sentir-te no ar, a respirar, a sussurrar. A soletrar. Sem saberes
ler nem escrever.Que-ro per-ce-ber-te. Len-ta-men-te. Ao ritmo do volante que
se agita no poema sem metade onde a vida tortura a liberdade.
Quero ser teu e tu
seres minha. Na mesa do chef e na cantina. Em esquadras clandestinas de polícia
onde os amantes se encontram sem ninguém saber, fingindo-se meliantes sem valor
ou apenas sujeitos sem os predicados necessários ao amor. Quero-te língua, na
minha palavra. Só músculo e nervo. A cravar ideias no calendário como padrões
na terceira, na quinta e na sétima letras do abecedário. Quero-te lá. Clara
como Cabral. A fingir que há horizonte se não falas. A enganar pontos de fuga e
cardeais. A inventar brasis e carnavais.
Quero-te estrela
cadente, ave bucólica, pérfida serpente. Quero-te levar ao cimo de um monte
patra que me digas que tudo será meu se te adorar: o paraíso, o improviso, o
céu e o mar. Quero dedicar-te um teorema como se fosse um soneto, definir-te o
algoritmo antes alfabeto. Quero que sejas grande e ao mesmo tempo pequena. Que
sejas universal e nunca voltes para casa.Não quero que me encontres com outra
namorada. Gosto de te ver entrar na minha boca, sempre molhada e quente, como
se eu fosse o poema e tu a sua semente”.
Amândio G. Martins
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