segunda-feira, 25 de novembro de 2019


Em meados do século passado...


...Pensava assim John Steinbeck:  "Não sei o que nos reservam os anos que estão para vir. Preparam-se monstruosas transformações, forças extraordinárias desenham um futuro cujo rosto desconhecemos. Algumas delas parecem-nos perigosas porque tendem a eliminar o que consideramos bom. É bem verdade que dois homens juntos levantam mais facilmente um peso do que um homem só.Uma equipa consegue fabricar automóveis mais rapidamente e melhor do que um homem só. E o pão que sai duma fábrica é menos caro e de qualidade mais uniforme do que o do padeiro.

 Quando a nossa alimentação, a nossa vestimenta e os nosso tectos forem apenas o fruto exclusivo da produção estandardizada, chegará a vez do pensamento. Toda a ideia que não obedecer a uma bitola deverá ser eliminada. A produção colectiva ou em massa entrou na nossa vida económica, política e até religiosa, de tal modo que certas nações já substituíram a ideia de Deus pela de colectividade. A tensão é grande. O mundo caminha para o seu ponto de ruptura.
                                                    (...)
A nossa espécie é a única criadora e dispõe de uma só faculdade criadora: o espírito individual do homem. Dois homens nunca criaram nada.Não existe colaboração eficaz em música, em poesia, nas matemáticas, na filosofia. Só depois de se ter dado o milagre da criação é que o grupo o pode explorar. O grupo nunca inventa nada. O bem mais precioso é o cérebro isolado do homem.
                                                           (...)

Eis o que penso: o espírito livre e curioso do homem é o que de mais valioso há no mundo. E por isso me baterei: a liberdade para o espírito de tomar a direcção que lhe apetecer. E contra isto me baterei: qualquer ideia, religião ou governo que limitar ou destruír a noção de individualidade. Compreendo perfeitamente porque é que um sistema baseado numa bitola considera seu dever eliminar a liberdade de espírito: é que só ela, através da análise, pode destruír o sistema. Sim, compreendo tudo isto muito bem e tenho-lhe ódio, e sempre me baterei para preservar a única coisa que nos coloca acima dos animais que não criam. Se a graça puder ser destruída, estamos perdidos”.


Transcrito por Amândio G. Martins
















4 comentários:

  1. O seu texto deu-me que pensar. Se me ativer ao indidualismo como motor de todo o processo criativo, bastará dizer: concordo. E os colectivistas utópicos cometeram o erro de julgar que assim não era. Tentaram o condicionamento do pensamento "in utero" mas... aquele é escorregadio e aparece noutro lado, sob outra forma. Curioso que, neste tempo de loas a José Mário Branco, vi, num documentário, o artista a dizer numa assembleia de colectivistas "criativos" o seguinte: nós é que somos os individualistas! (sic). Mas o homem era um génio, não era?
    Dito isto, ficam-me muitas coisas a bailar na cabeça, resultantes do você diz e do que cita de Steinbeck. Mormente quando fala das religiões. Então não é que o processo criativo maior não foi o... do ser humano? Advogando "a favor do diabo", foi a espécie humana que se criou a si própria? Vem de um início aleatório que se apurou ao longo de muito tempo? Ou... foi Deus? E porquê o(s) deu(ses) não continuam a "dar cartas" no condicionamento das colectividades humanas? Ah, fica o tal espírito livre que você e eu tanto prezamos... esperemos. Voltarei se o Amândio me der mais motivos para "embirrar".

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  2. Se não se importam, agora é a minha vez de “embirrar”. Muito do que se disse acima, pelos dois, merece o meu acordo. Mas não tudo, porque entendo que a contextualização das afirmações é sempre fundamental. Começo pelo mais óbvio: Steinbeck publicou o “A Leste do Paraíso” em 1952. Mais maduro, certamente, do que 13 anos antes, quando publicou “As Vinhas da Ira”. Os homens podem mudar durante as suas vidas, nada contra. Mas o individualismo de que, aqui, o Amândio Martins dá conta (enaltece?), invalida o colectivismo anterior?
    Não esqueçamos que, três anos antes daquela publicação, tinha sido dado à estampa o “1984”, de George Orwell. No período imediatamente a seguir à 2ª Guerra Mundial, alguns, no mundo ocidental, aperceberam-se do “fenómeno” estalinista, muito antes do mundo em geral. Provavelmente, cada um deles reagiu à sua maneira, sem, aliás, desmentirem as suas “vidas” anteriores, como a de Steinbeck, literária, ou a de Orwell, activa na Guerra Civil de Espanha. O acumular dos anos traz, quase sempre, alguma temperança aos devaneios romântico/revolucionários, como lapidarmente lembrou Willy Brandt.
    Ambos os escritores, parece-me, adivinharam a globalização que aí vinha. Preocupados com alguns dos seus aspectos, mais materiais (o americano), e com as mentes (o inglês). Embora Steinbeck não escondesse alguma tendência mística (Deus?) que, de momento, dada a minha “formação” agnóstica, não me aflige, a exaltação do “espírito livre” individual não lhe permite, penso eu, afirmar (baseio-me na transcrição do Amândio Martins) que “o grupo nunca inventa nada”. Em minha opinião, o “grupo” inventa, e mais: cria. Não só nas Artes, mas na Ciência, onde o complementarismo dos saberes se torna absolutamente necessário para avançar no Progresso que deve ser o desígnio da Humanidade. Já no que toca a Orwell, ele aspira à liberdade dos espíritos que, natural e obviamente, começa na liberdade do espírito individual, mas pressinto-lhe uma preocupação profunda sobre a falta de Ética.
    A propósito de Ética na vida, os leitores do Público de ontem (“Mais um prego no caixão do neoliberalismo”, de Agostinho Pereira de Miranda) puderam ter acesso a uma explicação muito convincente (para mim) do conteúdo do neoliberalismo, e de como ele, por dentro, está a ser posto em causa por alguns dos seus mais importantes praticantes. Cultores do individualismo e da liberdade de espírito individual começam a reconhecer que as empresas têm responsabilidades para com “todos” e não apenas para com os seus accionistas. Estou em crer que, quase setenta anos depois de Steinbeck ter escrito aquelas palavras acima, ele condenaria o estado a que tudo isto chegou por se ter seguido a rota da “liberdade individual”.

    P.S.: Não conheço a frase citada do José Mário Branco e, portanto, desconheço o contexto. Provavelmente, não desmente o sentido que eu próprio tenho do trabalho individual que, aliás, pratico. Sei que o Fernando não quis “desfazer” na genialidade do artista, que, de resto, se evidenciou noutras áreas, algumas delas bem patentes de que o trabalho de grupo pode ser enriquecedor.
    Mas gostei muito daquela de os deuses não condicionarem eficazmente as colectividades humanas (as palavras são minhas).

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  3. Das religiões, Steinbeck diz mais à frente: "A igreja e o bordel chegaram ao mesmo tempo ao Oeste. E ambos teriam ficado horrorizados se soubessem que não passam de diferentes facetas da mesma necessidade. Porque, na realidade, ambos pretendiam alcançar o mesmo fim: os cânticos, os ritos, a poesia da igreja ofereciam ao homem o esquecimento da sua tristeza; o bordel, esse oferecia-lhe outros esquecimentos. As diversas seitas chegaram de cabeça levantada e combatiam o mal, é certo, mas também se combatiam umas às outras com um vigor diabólico"...

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  4. Comento para os dois, está bem?´É óbvio que todo o processo criativo - mormente na ciência -pode ter colectivo mas, dum modo geral, mesmo aí, a ideia inicial é, habitualmente, singular. O José tem razão quanto ao papel do colectivo no desenrolar do processo, mas isso é outra coisa, quer na feitura quer no sujeito a que se dirige. Quanto ao José Mário Branco, que respeito e aprecio, julgo que o sentido que deu à frase que proferiu, foi precisamente que eu disse atrás.
    Quanto às religiões, bom... se nos dividirmos entre o bordel e a religião, ficamos muito mal na "fotografia", não será? A "transcendência horizontal" e a espiritualidade humanas ,para mim, não são utopias mas sim processos queridos que bastarão para o efémero que é a nossa vida...

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