Portugal passou a comemorar a língua
pátria em 10 de junho de 1981, em homenagem ao 4º centenário do falecimento de Luís
Vaz de Camões, o imortal compositor do grande poema épico “Os Lusíadas”; já a
comunidade dos países de língua portuguesa (Cabo Verde – 2009) fixou a data comemorativa em 5 de maio, enquanto o
Brasil, somente em 12/06/2016, através da Lei nº 11.310, veio consagrar 5 de
novembro como o dia de reverência à língua portuguesa, lembrando o nascimento
de seu maior cultor, o eminente jurista Rui Barbosa.
Embora sempre favorável a uma reforma
simplificadora, em plena harmonia com setores intelectuais de Portugal, o
grande Rui combateu veementemente as correntes que defendiam a transformação do
idioma num dialeto brasileiro, com máxima liberdade, o que ele chamava de “surrão
amplo, em que coubessem todas as escórias da preguiça e do mau gosto, desde que
criadas para o agrado dos que ignoram a sua língua”.
No afã de justificar suas observações
para o aprimoramento da redação do Código Civil de 1916, contestadas pelo
ilustre professor Ernesto Carneiro Ribeiro, escreveu a famosa “REPLICA”, que se
tornou um repositório de grande erudição linguística: era o lúcido discípulo,
em debate com o respeitável mestre visando ao objetivo de atingir um nível de
aperfeiçoamento do estatuto substantivo civil brasileiro.
O atual Código Civil, de 2002, adotou
em grande parte, a redação do anterior, mas, em alguns setores, não ficou bem
redigido (art. 1829) e criou uma alteração de mau gosto e até antieufônico ao
admitir o usucapião como palavra feminina (a usucapião). Com todo o respeito a
quem entenda diferente e até mesmo ao que está escrito na legislação civil
portuguesa, não vejo razão plausível para aceitar o argumento de que a palavra
deva ser feminina só porque em Latim teria sido, muito discutivelmente, deste
gênero, ademais é de se levar em conta que, na transmudação etimológica, a
manutenção do gênero do vocábulo não é obrigatória. O ilustre gramático
Silveira Bueno a considera masculina, já os dicionários de Aurélio Buarque e de
Antônio Houaiss a registram como de duplo gênero.
Importante salientar que, na formação
latina do vocábulo, a base foi o substantivo “usu” no caso ablativo, acompanhado
da forma verbal “capio”, daí o nome usucapio
(“conquista pelo uso”), cujo acusativo usocapionem
resultou em usucapião na língua portuguesa.
Tudo indica que o feminino (a usucapião) se refira à ação processual, e não à
palavra propriamente dita designadora do instituto jurídico. Não se pode, pois,
confundir a ação de usucapião com direito de usucapião. Adotou-se o masculino
na tese por mim defendida e aprovada sobre o usucapião, no 1º congresso do
Ministério Público do Estado de Goiás realizado em setembro de 1976.
No seu
famoso discurso como paraninfo em colação de grau de bacharéis em Direito
(ORAÇÃO AOS MOÇOS), Rui esbanja o seu talento oratório, numa apoteótica
demonstração de cultura jurídica e linguística, em que não faltou a
simplicidade do uso de certas comparações exemplificadoras e até irônicas, ao
dizer, numa crítica ao funcionamento da justiça, que “os processos andam nos
tribunais como o bicho preguiça no mato e penam nas mãos dos juízes como almas
no purgatório”.
Ele poderia
ter dito também que precisa haver clareza nos arrazoados advocatícios,
postulações do Ministério Público, despachos e decisões judiciárias, até mesmo,
se preciso for, com uso de expressões repetitivas nem sempre maculadoras do
estilo, para evitar dúvidas, já que, segundo Antoine de Saint- Exupéry, autor
do livro “O Pequeno Príncipe”, “a linguagem é a fonte dos mal-entendidos”.
Lembro-me de
um processo criminal que tratava de um caso de sedução – um delito do passado
que, mesmo nos antigos tempos, não se ajustava bem à realidade social. Ao
prestar depoimento, uma jovem menor de 18 anos, disse que acreditando nas
promessas de casamento, se entregou ao namorado, em relações sexuais, porque
gostava dele e tinha muita confiança nele. Ao transcrever suas palavras, no
termo das declarações, colocou o escrivão que, “em virtude de promessas de
casamento do acusado, com ele a depoente manteve relação sexual, porque gostava
e confia muito nele”.
Intervindo
como agente do Ministério Público, solicitei fosse alterado o registro para
evitar ambiguidade a comprometer o sentido real do que foi dito e a bem da
correção linguística, porque os verbos gostar e confiar tem regimes diferentes
quanto à preposição diante de seus objetos. Então ficou assim escrito: “Manteve
relações com o acusado, porque gostava dele e nele confiava muito.” Na redação
anterior, poder-se-ia entender que o gostar seria da relação sexual; aliás, um
bom gosto, desde que de acordo com as leis naturais, sem abusos extravagantes,
e assim se torna um estimulo atenuante dos percalços conjugais: “uma isca de
prazer para que haja cumprimento de dever”, na opinião do sábio filósofo
cristão Huberto Rohden, de quem tive a honra de ser aluno.
Conforme
escrevi em artigos anteriores, muita modificação simplificadora precisa
acontecer para facilitar o aprendizado de nossa língua tão cheia de
complexidade, cujo número de falantes se estima em mais de 260 milhões. Seria
bom acabar com o “ç” cedilhado; “s” com som de “z”, “ch” com som de “x” e
outras coisas mais.
Aprendi
analise sintática com o saudoso professor Hermenegildo Marques Veloso, português
de Figueira da Foz que, jovem ainda, veio para o Brasil. Mais tarde após minha
experiência de magistério no tradicional Lyceu de Goiânia tornei-me autor de um
modesto livro sobre o assunto sempre considerando que analise sintática é meio
e não fim para o bom entendimento dos textos.
Seu objetivo
deve limitar-se ao mais essencial, visando, principalmente, às noções de
concordância verbal e de pontuação, através de reconhecimento de sujeito da
oração e das funções complementares, como sempre também me ensinaram os
professores Baltazar dos Reis, Carlos de Campos e Gilberto Mendonça Teles,
sendo este um grande poeta e exímio filólogo premiado com bolsa de estudo em
Portugal, onde permaneceu por mais de um ano, e é, sem dúvida, a maior
expressão das letras do Estado de Goiás, com várias obras publicadas, entre as
quais “A Poesia em Goiás”, “Camões e a
Poesia Brasileira “ e Carlos Drumond de Andrade—Estilística de Repetição”.
Já vi
questiúncula discutível e polêmica de análise sintática prejudicar candidatos
ao ingresso nos cursos superiores, nos chamados exames vestibulares, tal como
aconteceu, em fevereiro de 1958, na Faculdade de Direito sediada na rua 20 de
Goiânia, mais tarde integrada na Universidade Federal de Goiás.
Como era
grande o número de concorrentes, cerca de 200 para apenas 80 vagas, foi
temerariamente rigorosa a banca examinadora composta pelos professores Romeu
Pires de Campos Barros e Zechi Abrão, ao escolher um longo texto do escritor
Raul Pompeia, cuja análise, sobretudo quanto à oração principal do período, foi
bastante valorizada na atribuição de pontos.
Eis o texto:
“Obedecendo
à dolorosa imposição das circunstâncias que forçavam a um enérgico procedimento
para com os príncipes do ex-Império, o governo teve necessidade de isolar o
paço da cidade, vedando qualquer comunicação do interior com a vida da capital”.
A oração principal do extenso período poderia
ser: “O governo teve necessidade de isolar o paço da cidade”. Em face da
existência de uma locução verbal, o núcleo do predicado poderia ser “teve
necessidade de isolar”, e “paço da cidade” constituiria o objeto direto, tendo
“paço” como núcleo e “da cidade”, como adjunto adnominal. Mas também, a
principal poderia ser apenas “o governo teve necessidade” e, neste caso, “teve”
funcionaria como predicado verbal, e “necessidade” como objeto direto. A oração
seguinte “de isolar o paço da cidade” ficaria analisada como uma subordinada
substantiva completivo - nominal reduzida de infinito, ou seja, uma oração
integrante complementar da palavra “necessidade”, equivalendo a “que fosse
isolado o paço da cidade “ou a um simples substantivo, o isolamento.
O
desdobramento do infinitivo “isolar” em outra oração seria muito mais lógico,
até porque a análise sintática é também chamada de análise lógica, e com este
entendimento, a palavra “necessidade”, ao invés de ficar sem análise integrando
a expressão verbal, seria analisada como o legitimo objeto direto do verbo.
Infelizmente,
não foi aceita como válida está correta opção e um grande número de examinandos
foi prejudicado, inclusive eu, que, na época, ainda não era um professor de
língua portuguesa; mas, modéstia à parte, meu conhecimento sobre análise
sintática não era inferior à dos examinadores; teria sido capaz de enfrentá-los
num debate, mas revisão não era permitida e a perda de pontos acabou
prejudicando minha aprovação. Fiquei muito traumatizado. Outro exame vestibular
só aconteceu no ano seguinte (1959) quando obtive o segundo lugar na
classificação dos aprovados para o curso jurídico.
Eis aqui
minha sincera homenagem à Língua Portuguesa, em mais uma de suas datas
comemorativas. Que seja sempre estudada, querida por todos nós, seu
conhecimento exigido em qualquer concurso, mas com avaliação dentro dos limites
do bom-senso, sem rigores exagerados, porque ela é muito difícil e ninguém a
domina plenamente.
Seja ela sempre um elo de união entre
nossa gente e a lusitana no encontro de almas nacionais na literatura, tal como
demonstrou o inesquecível cantor português Roberto Leal (nome artístico de
Antônio Joaquim Fernandes), que, recentemente partiu para o mundo espiritual,
nos deixando a indelével marca da saudade—palavra exclusiva de nossa língua —em
seus maravilhosos cânticos no fado, no vira, na chula e no samba, onde aparecem
os belos versinhos de um refrão do fado “Brasil e Portugal”, de sua autoria
juntamente com Silvio Brito.
O
que amor uniu
não
tem final;
Sou
o Brasil,
és Portugal.
Quase perdi o fôlego, mas li até ao fim. Este notável texto do professor Vivaldo Araújo trouxe-me à memória o enorme actor Paulo Gracindo que, no papel de coronel Odorico, numa novela de que não recordo o nome, cultivava o gosto pelas frases "grandiloquentes", rematando sempre com um abusivo "Rui Barbosa". Isto fez-me procurar saber quem era essa figura multifacetada, que até chegou a estar exilado em Portugal, em consequência da sua participação na Revolta da Armada, em 1893. Viveu ainda um quarto de século depois disto, pois faleceu no Rio de Janeiro em 1923.
ResponderEliminarO texto é dificilmente "digerível", mas seguramente que em enriqueceu.
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